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21º IndieLisboa Críticas

Fishmonger: um toque de surrealismo

Exibido na maratona noturna Boca do Inferno, no IndieLisboa, Fishmonger (2023) é uma curta-metragem dirigida por Neil Ferron que se adequa à ocasião. Com uma narrativa simples, mas inesperada, faz-nos torcer pelo miserável protagonista, Christie O’Mallaghan, um pescador solitário que é odiado por todos na ilha de Connamarragagh.

Uma comédia ligeiramente fora do comum, já que à partida se poderia inserir, a nível estilístico, juntamente com os filmes de terror. Mas não se pode considerar um deles, já que as cenas são concebidas não para que o espectador sinta medo, mas para que consiga capturar todas as nuances do protagonista, sentindo a sua dor, mas também rindo das situações completamente absurdas e aterrorizantes em que se encontra, encontrando-se mais num registo híbrido. Lembrando-nos os clássicos Monstros da Universal e influenciado por The Lighthouse (2019), de Robert Eggers, estabelece-se uma atmosfera muito semelhante à que se encontra nestes. Além deste ambiente que se instala, a curta-metragem conta com efeitos práticos bem trabalhados que merecem um lugar de destaque, sendo os próprios um elemento essencial para a construção da aura do filme.

Com um argumento minimalista e criativo, o silêncio é extremamente valioso. O timing das falas é sempre o acertado – e não podia ser melhor para contribuir na criação de um ambiente simultaneamente familiar, ao fazer rir o espectador, e estranho, ao envolvê-lo numa narrativa bizarra, em que o protagonista faz um pacto sexual com uma grotesca criatura marinha, de modo a salvar a alma da mãe, na morosa hora da sua morte.

Fishmonger, de Neil Ferron © Todos os direitos reservados

Para evitar que a alma da mãe fosse para o inferno, esta teria de ter um filho casado ou um filho morto. Por essa razão, o padre que a acompanha sugere a Christie que embarque numa jornada de modo a invocar uma mítica criatura marinha, Sinead (Donnla Hughes) que concede desejos – assim poderia pedir que Penny O’Brien, a única mulher solteira da ilha, se casasse com ele, já que a alma da mãe seria entregue ao diabo se esta morresse com um filho solteiro. As coisas não correm como planeado e apesar de Christie estar disposto a tudo, incluindo a sacrificar a sua própria vida pela mãe, no fim, Christie e a criatura grotesca Sinead percebem que têm mais em comum do que imaginavam e acabam por se apaixonar.

Fishmonger, de Neil Ferron © Todos os direitos reservados

É de destacar, acima de tudo, este surrealismo pulsante que habita no filme. Os olhares, os gestos, os objetos (quase) com vida própria. A cor, que espelha o estado de espírito do protagonista, é sombria e dramática quando este se encontra desesperado e torna-se mais viva e clara quando explora a sua nova realidade – momento em que o filme, ironicamente, assume a forma de musical. Note-se, aqui, o uso do visual como veículo de transmissão do seu estado psicológico.

A embriaguez emanada pela iluminação contrastante hipnotiza o espectador, num vórtice estonteante de fotogramas que trabalham de forma exímia as várias camadas dos planos. A relação entre as personagens e o espaço é bem estabelecida, através da noção de profundidade e distância, recorrendo à luz e à cor – trabalho extremamente difícil de realizar, já que o filme é monocromático.

Fishmonger, de Neil Ferron © Todos os direitos reservados

Merecendo uma menção especial na composição de Fishmonger, tem-se a desconcertante banda sonora que complementa perfeitamente a atmosfera surrealista transmitida pela estética visual absurda e cheia de contrastes, que fixa de maneira extraordinária a atenção do espectador.

O equilíbrio conseguido nos escassos minutos desta curta-metragem é de louvar, tornando o filme num quase ensaio filosófico sobre o amor, sobre o outro e o marginal. A harmonia composicional dada pela interligação entre argumento, fotografia, iluminação e montagem contribuem para uma experiência cinematográfica que apela ao pathos, provocando no espectador um misto de sensações, da gargalhada ao nojo. 

Catarina Gerardo

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