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O calor que entra pelas ranhuras – The Feeling That the Time for Doing Something Has Passed

The Feeling That the Time for Doing Something Has Passed (2023) é a estreia de Joanna Arnow na realização de longas metragens ficcionais. Também é a sua estreia na montagem, atuação e escrita num projeto de maior dimensão. O filme acompanha um período contido da vida de Ann (representada pela cineasta) no qual ela se envolve com variados homens de forma romântica e sexual, estando em primeiro ou em segundo plano a sua propensão para jogos sexuais de mestre/submissa.

The Feeling That the Time for Doing Something Has Passed, Joanna Arnow © Magnolia Pictures

O filme opera em grande parte por meio de planos prolongados de Ann com o parceiro com quem está nesse momento. São planos estáticos, normalmente em ambientes estáticos, onde a única coisa com vida são os corpos que neles estão circunscritos. Joanna encurrala a personagem, e ela mesma, com os limites do enquadramento. Tal gesto em muitos casos cairia, tanto num sentimento de enclausuramento e obstinação formal, como também, possivelmente, numa sensação de formalismo forçado. Joanna Arnow tem noção disto, e contrasta sempre este firme formalismo com dois aspetos, normalmente em simultâneo.

O primeiro é o da comédia, sendo um filme genuinamente engraçado – onde o próprio humor tem a mesma capacidade perfurante que a tristeza. O sentido de humor deste filme é muito agudo, funcionando, acima de tudo, a partir de como trabalha o tempo, algo que vai de encontro ao antes mencionado, existindo tanto dentro do plano, como no corte cruel ou misericordioso. O perigo de se tornar punitivamente triste é então evitado também através do segundo aspeto, o da autoficção*1.

O último passo que realmente atribui um certo calor ao filme, fazendo uma ponte sobre o fosso entre o patético e o empático, é a sua aproximação deste género de definição tão vaga. Atrás de cada momento de humor cruel em volta desta personagem (recuso-me a dizer “às custas” num filme que mostra esta compreensão), está Arnow como a argumentista que o escreveu. Em cada momento de exibição do corpo ou degradação sexual, sente-se atrás da câmara um duplo do corpo, a mesma atriz, aqui como cineasta, a filmá-lo e a querer que seja tal. Em cada decisão de plano prolongado e de corte preciso, está a lâmina de Arnow como montadora a certificar-se que seja tal.

Por cada momento triste ou negativo, mesmo que venha depois de calor e felicidade, há uma certa impossibilidade em ver o filme como pessimista ou completamente frio. Uma vida de frieza é quebrada por calor. Mesmo que este não perdure, o ciclo já foi quebrado, sendo agora o sistema mais frágil. A felicidade que vem antes da tristeza dá a esta tristeza alguma esperança, em vez de ser só uma piada muito dura (embora, claro, também seja). Um cineasta que não tem apreço pela felicidade ou que a encena apenas para sublinhar como pode ser destruída, nunca conseguiria dramatizar uma cena que tão efusivamente tem a textura real da felicidade como Ann na cama a cantar Les Misérables ao seu namorado. Joanna Arnow não declara que o tempo para fazer algo passou, apenas dramatiza o que é sentir que passámos desse momento final.

Vasco Muralha

  1. *Num pequeno aparte, penso ser importante realçar o quão grande desserviço a esta obra é a comparação constante a Lena Dunham. Não só são as semelhanças puramente à superfície (autora que se apresenta nua, autoficção, Nova Iorque…), como a forma como esta as aborda não poderia ser mais diferente (Girls é uma autoficção mais resplandecente que a realidade, com momentos destroçantes deste mundo exterior que a estilhaçam, enquanto este filme é uma versão sombria da realidade, com momentos de uma felicidade absolutamente real que irradiam pelas ranhuras de cada momento opressivo). ↩︎

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