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O Auge do Humano 3: Os Mundos ao Redor

Se o gesto de escrever sobre cinema constitui, já em si, uma ousadia, como adjectivar a tentativa de escrever sobre O Auge do Humano 3 (2023), do realizador argentino Eduardo Williams? Acabado de estrear em Portugal, a estranheza da sua proposta começa pelas técnicas que usa, nomeadamente, a escolha de filmar com uma câmara VR 360º (“O desafio não é filmar ou não filmar, é como filmar”1), e da liberdade diegética que se desvia do cinema narrativo mais tradicional, contendo uma exploração profunda das relações inter-humanas. Surgido sete anos após o primeiro O Auge do Humano (2016), O Auge do Humano 3 sugere a ideia de um possível O Auge do Humano 2 que poderá vir no futuro ou que exista de forma etérea e imaginativa no limbo entre este e o primeiro.

O Auge do Humano 3, de Eduardo Williams © Oublaum Filmes

Este “auge do humano” acaba por ser um conceito suficientemente amplo para não encerrar o filme numa temática ou direção interpretativa. Admitindo o seu gosto por uma visão grandiosa da humanidade  já sugerida no título, o realizador foca-se no contraste criado com essa ideia e o registo quotidiano e banal  das suas personagens. A impressão geral de que o Humano pode estar no seu pico traz também o já cliché anseio/receio pelo fim do mundo. Assim, este auge caminha, inevitavelmente, lado a lado com visões apocalípticas ou quiméricas. 

Depois de nos habituarmos à perspectiva panóptica, instalamo-nos numa espécie de mundo virtual, numa estética que o aproxima de um videojogo que não sabemos jogar (o 360º é como uma cabeça que observa o que quer, remetendo para um jogo fps2). Essa característica faz-nos imergir no filme de um modo voyeurista – presente, mas invisível. Aqui, sabemos que tudo o que nos rodeia é imagem – o 360º neutraliza o fora de campo, sempre à distância de uma decisão na montagem. 

O filme é uma mistura entre a realidade orgânica que Williams acompanha e a encenação precisa, de forma a criar um ambiente que parece o documento de uma sociedade que se funde com algo de virtual. Diz o cineasta argentino que “muita gente pensa que usar uma câmara de realidade virtual é querer fazer moderno. Mas o que me interessa é ligar isso ao acto primitivo de observar. Não é a tecnologia em si que interessa; é como usá-la para fazer algo de tão simples como ver o outro.”

Williams parece ir à procura de perceber o que interliga este mundo global em mudança constante e ultra veloz, deparando-se com aquilo que são os anseios de uma certa camada juvenil da sociedade. Aquilo a que se propõe é seguir esta espécie de crise existencial na era digital, atravessando um cenário de desolação em que desabafos sobre trabalhos miseráveis e a vergonha de ser mega milionário trespassam continentes. Isto porque o filme de Williams é filmado, à semelhança do primeiro Auge, em vários países, desta vez passando pelo Peru, Sri Lanka e Taiwan. Lugares que se fundem e se confundem, mas que dão espaço a um olhar límpido sobre relações humanas e a um filme de comunidade que usa o cinema como essa “ferramenta de passar tempo juntos”. A temática do trabalho está sempre presente, seja no discurso dos momentos de lazer, fora do trabalho, seja no ritmo e no funcionamento da sociedade que capta. 

O Auge do Humano 3, de Eduardo Williams © Oublaum Filmes

O Auge do Humano 3 também pode significar uma leitura da história do avanço tecnológico, remetendo esse auge para um apogeu biónico. Ver este filme é como entrar numa espécie de Google Earth, uma “Terra Google” onde, no lugar de fotografias, temos a ação real – a ideia materializada de um big brother mundial. É evidente que o filme dá margem para bastantes reflexões, tratando-se de um exercício aberto e provocador.

Ao longo de duas horas, vai-se afastando da sua premissa documental, transcendendo a realidade como a conhecemos, desfigurando paisagens e rostos – culminado no ponto em que personagens se queixam de estarem deformadas – num uso fulguroso da tecnologia que acaba a oferecer-nos estranhas mas fascinantes imagens caleidoscópicas. Nos últimos vinte minutos, entramos verdadeiramente noutra dimensão, onde ascendemos ao céu, à utopia de uma comunidade feita de sonhos e palavras. O filme adquire uma estética cinematograficamente poderosa e atual. Envolve-nos e apela aos nossos sentidos, numa relação que tem tanto de física como de intelectual. O resultado é um objecto onírico e hipnótico como um jogo algures entre o místico e o surreal que dificulta, mas também desafia, a criação de um qualquer discurso sobre o mesmo.

Ricardo Fangueiro

  1. https://www.publico.pt/2024/06/05/culturaipsilon/entrevista/eduardo-williams-nao-medo-desconhecido-2092710 ↩︎
  2. First person shooter ↩︎

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