Há uma imperturbável maré de simplicidade que nos circunda na primeira longa-metragem da escocesa Charlotte Wells. Paradoxalmente constrói-se entre a complexidade de uma memória coletiva e a suavidade das imagens, através das quais viajamos em Aftersun (2022).
O filme começa in media res com um dos registos de vídeo de Sophie (Frankie Corio) na sua câmara DV, encetando uma lógica de mise en abyme em que a distância, o desejo, a memória e o cinema dialogam entre si.
Sophie e Calum (Paul Mescal), filha e pai, passam férias num resort na Turquia onde aproveitam para pôr em dia a vida um com o outro. Os dias de sol decorrem entre atividades aquáticas, partidas de snooker e arcade junto ao bar da piscina, entre os quais a preponderância dos silêncios, nos permitem enquadrar emocionalmente ambos os personagens. À medida que são introduzidas complexidades de uma relação entre pai-filha pós divórcio, com que cada um de nós se poderá relacionar, Calum procura a melhor forma de tornar proveitoso o tempo passado com Sophie, concentrando-se no que pode fazer, mesmo com pouco dinheiro, em busca de um tempo perdido. Por sua vez, Sophie, debruçada no parapeito da pré-adolescência, procura no mar infinito as respostas, presumivelmente sobre o seu lugar de pertença. A distância — de forma literal na geografia onde se encontram — bem como esta procura (de Sophie mas também de Calum) — no próprio ato de viajar — apresentam-se-nos, cada vez mais, profundas, pelo laço eterno que une os dois mas também pelo que ambos procuram, um no outro. Ladeado pela impotência de lutar contra o tempo e pelo fulguroso desejo de crescer e obter respostas, Calum usa o pouco dinheiro que tem para comprar uma memória — um tapete turco — numa das cenas que apresenta a poética de Wells, quase como prosa, não despisse a sua camuflagem quando já nos revolve no âmago.
Simetricamente, em frente a uma Sophie já adulta, esta distância e procura são reativadas nas memórias que recorda através dos filmes-dentro-do-filme que à semelhança do tapete, asseguram um lugar de pertença, no qual se poderá sempre projetar.
A câmara DV que no filme nos mostra o que veem os olhos de Sophie mostra-nos também o que viram os nossos, no nosso cinematógrafo individual, traduzindo uma ideia de descoberta como crescimento, encontrando rimas no cinema como o buraco por onde Noodles espreita para ver Deborah dançar em Once upon a time in America (1984), de Sérgio Leone, ou de outra forma, sublinhando a ideia de distância, no óculo traseiro do carro em movimento através do qual Filipe fica a ver o pai fazer macacadas cada vez mais longe, em Adeus, Pai (1996), de Luis Filipe Rocha.
Há um plano numa das cenas de arcade onde se pode ler game over e que podia ser o ritornelo na musicalidade sensível que Charlotte Wells nos oferece, de forma tão simples em Aftersun. Algo como: a vida é um game over contínuo interrompida apenas por amores de verão.
Sebastião Casanova
[Foto em destaque: Aftersun, Charlotte Wells © Direitos Reservados]