Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo.
Estas reflexões de José Saramago foram originalmente escritas para Lisboa. São “Palavras para uma cidade”, nascidas a partir de uma curiosidade sobre o berço lisboeta e um anseio profundo de poder testemunhar todas as suas mutações e não apenas aquelas que vieram depois de 1895. É um desejo universal, este de criar algum tipo de fisicalidade às nossas memórias. Por isso é que tiramos fotografias, gravamos os nossos vídeos caseiros e compramos porta-chaves da torre Eiffel quando vamos a Paris. São fontes externas, provas dos momentos que experienciamos e ferramentas que podemos manusear para olhar para trás e tentar afirmar, com alguma objetividade: “Eu fiz isto. Eu estive aqui. Neste instante, nós estávamos assim.”
Desta forma, procuramos alcançar também algo exterior a nós, seja uma pessoa ou um lugar, na tentativa de lacrar algo antes que a mente possa trair a anamnese. É neste âmago que surge Aftersun, a primeira longa-metragem da realizadora escocesa Charlotte Wells, cuja protagonista, Sophie, recorda uma semana de férias passada na Turquia com o seu pai, Callum, nos finais dos anos 90. Na corrente de um ritmo delicado, viajamos turvamente entre passado e presente, posicionados na subjetividade de Sophie e no conhecimento implicado de que Callum não se encontra no mais recente plano temporal.
A âncora das suas memórias são, naturalmente, os vídeos caseiros que gravou naquele período, com a descontração e desenfadamento característicos de uma criança de 11 anos que descobre a sua primeira câmara e de um pai a querer encapsular a infância da filha. Com a idade, as imagens tornam-se vinhetas de um tempo irrecuperável, objetos de análise que preenchem as lacunas de um mistério. Sophie parece absorvê-las, questionando o que escondem por trás, na esperança de encontrar respostas. Assim, mesmo nos momentos de inocente felicidade e ternura genuína, permanece, engrenhada, a profunda melancolia do presente e a sensação de haver algo, permanentemente por definir, a borbulhar por debaixo da superfície.
Geralmente, esta é uma história associada ao género conhecido por coming-of-age, uma expressão propositadamente aberta. Podemos pensá-la como “chegar a uma idade”, podendo indicar uma maioridade ou simplesmente uma outra etapa do crescimento humano. No fundo, é um certo tipo de amadurecimento. Mas o que define exatamente esse processo e a quem o podemos associar?
No presente caso, Aftersun coloca ambos os seus protagonistas no precipício da mudança. Sophie, numa posição mais clara, prestes a fazer o salto da infância para a adolescência e Callum, aos 31, no limbo incerto entre jovem-adulto e, simplesmente, adulto. Ou melhor, a imagem que normalmente associamos a essa palavra armadilhada. Uma pessoa formada, que já não tem a necessidade de se questionar a si ou ao estado da sua vida porque, convencionalmente, já o teria alcançado. Seria um pai com a possibilidade de oferecer aulas de música à filha ou comprar um tapete sem ter de pensar duas vezes.
Assim o conhecemos e, mais tarde, Sophie, exatamente no mesmo lugar. Contudo, como ela é o nosso veículo, a nossa porta de entrada para o filme, chegamos, mas nunca estamos, de facto, perto de Calllum. A câmara observa-o sozinho sempre a um braço de distância, de costas ou através de vidros e espelhos. Como se, por cima dele, permanecesse um véu translúcido, impedindo o contacto. Tentamos percebê-lo da mesma forma que ela, na sua imagem mental que serve como interlúdio, entre as luzes fortes e intermitentes de uma discoteca escura, onde, entre o balanço dos corpos, é difícil alcançar alguém.
Por isso persistimos na ambiguidade, no contraste sentido entre a experiência coletiva e individual daquelas férias, na oposição entre a alegria conjunta e a depressão solitária que, com a vulnerabilidade de Paul Mescal e Frankie Corio, se desembaraça naturalmente. O que separa as duas personagens nesse tempo, e as aproxima mais tarde, é exatamente aquilo sobre o qual David Bowie e Freddy Mercury cantam na frontal needle drop escolhida para o clímax, a instantaneamente reconhecível “Under Pressure”. It’s the terror of knowing what the world is about.
E nada mais apto para descrever toda a sensação nostálgica e agridoce do filme do que o título, Aftersun, o creme cuja aplicação minimiza os efeitos do escaldão, mas não cura, propriamente, a queimadura. Apenas o tempo tem essa capacidade. Não obstante, Sophie tenta de certa forma usar os vídeos que gravou com a outrora moderna handycam como a sua marca personalizada de aftersun, uma tentativa de refrescar as suas lembranças e, talvez, encontrar uma cura para a evanescência da memória. Mas de todas as imagens, talvez a mais marcante seja a de uma polaroid de 30 mil liras turcas. Segundo a segundo, as caras de Sophie e Callum vão surgindo no fundo branco. Ao testemunharmos o vazio a transformar-se num artefacto do passado, apercebemo-nos que a motivação de Charlotte Wells, nesta obra imensamente pessoal, é a própria tentativa de recriar essa mesma cadência de revelação, explorando os limites do seu alcance.
Margarida Nabais
[Foto em destaque: Aftersun (2022), de Charlotte Wells © Direitos Reservados]