Damos as boas-vindas à secção Alma Viva.
Neste recanto íntimo, desvendamos com paixão as nossas divagações e emoções, proporcionando uma experiência de purga cinematográfica que vai além do imediato e que logo se mistura com as nossas mais profundas referências visuais e bibliográficas.
Esta secção promove o texto poético-emotivo, por vezes, denso e com a necessidade da queda do filtro.
Como colocar em palavras algo que é da ordem do ser e não do estar? Como encontrar um modo de formulação que consiga captar este movimento fluído do espírito, simultaneamente fugaz e interminável? Casablanca é um dos poucos filmes que, visto através de um deslumbre atento, provoca no espectador esta moção do indescritível e do intocável. Por não ser algo que se veja, mas algo que se sente, tem a capacidade de tornar o tempo e o espaço em dimensões obsoletas, sem formas significativas de existência. Casablanca estreou no calor da Segunda Guerra Mundial, mas a nostalgia, a paixão e o desgosto deste drama romântico poderiam ser igualmente fruídos em qualquer tempo.
Não é pedida ignorância relativamente às circunstâncias externas. Aliás, elas são essenciais para a configuração da densidade psicológica da narrativa e das relações interpessoais que se estabelecem nela. É, antes, pelo poder deste envolvimento romântico entre Rick e Ilsa (e das belas interpretações de Bogart e Bergman) que a realidade pode ser deixada fora da sala. A guerra pode, por momentos, cair numa dispensabilidade adiáfora, e assumir-se apenas como um elemento contextual, adicionando uma complexidade indispensável à rede de acontecimentos dramáticos. Não se concentra nem em batalhas, nem em eventos históricos, apesar de alguns deles terem como função acentuar os dilemas morais das personagens. Não é um filme de guerra, nem é um cinema que se afirma como representante da politicidade vivida na altura. Utiliza, por isso, a vida – o ambiente tenso de Casablanca e o cenário da ocupação de Paris – como pano de fundo para o sonho do romance.
Edgar Morin1 observou que os espectadores não se limitam a assistir ao filme, sendo agentes que saem da posição de passividade da audiência e conseguem gerar emoção a partir da própria experiência pessoal, tendo como ponto de partida o filme ao qual assistem. Só emoções tão avassaladoras quanto a paixão romântica e o amor nostálgico, causados pelas reminiscências de Paris, são poderosas o suficiente para se sobreporem à realidade exterior, ao mundo em guerra que há lá fora. Isto porque o ódio vindo da guerra só pode ser combatido com amor, mesmo que este não seja um amor terminantemente feliz, apesar de o ter sido em algum momento. A paixão assume-se verdadeiramente neste triângulo de amores e é preferível à hostilidade dos conflitos exógenos, ainda que não resulte num happy ending para o protagonista.
Quando presenciamos os escassos beijos apaixonados e apaixonantes entre Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, envolvem-nos sequências que nos convocam tanto o corpo como a mente, como afirmava Gilles Deleuze2, imagens-perceção. Imagens que podem ser sentidas por qualquer um, provocadoras deste movimento fluído do espírito, expandindo a compreensão da experiência estética e percetiva do espectador. Imagens e ações que transcendem o seu campo. Um beijo nunca será só um beijo. Os afetos trocados, os modos dos protagonistas sentirem, de serem afetados pelos tormentos do exterior, afetam-nos a nós de igual modo, por intermédio do nosso olhar, que preenche os espaços em branco e se prende ao ritmo apaixonante dos flashbacks de Paris ou da canção icónica As Time Goes By – tornando cada experiência cinematográfica única e singular.
A composição meticulosa de cada plano aliada à banda sonora que certamente fica no ouvido, geram uma pregnância melancólica no espectador. Sabemos que o cinema chega ao íntimo de cada um de nós quando se verifica esta ativação de memórias emocionais – e, neste caso, é seguramente evocada a experiência pessoal de separação associada à ternura e à melancolia, principalmente quando ouvimos o icónico “Play it again, Sam”. Este filme de Michael Curtiz toca nos nossos pontos mais vulneráveis quando sentimos também uma identificação simpática com os protagonistas, com as suas vozes, com as suas expressões faciais, com os seus modos de ver o mundo, de interpretar a realidade, de sentir e de agir. Mesmo se nunca vivemos um amor assim, é impossível não sentir empatia pelo conflito sobre amor e virtude que se estabelece ao longo do enredo.
É sabido que não deixa de ser um filme político, e dos primeiros de Hollywood a incentivar o apoio à luta contra o regime nazi. Repleto de sequências memoráveis como a que se passa no café de Rick em que A Marselhesa se sobrepõe a Deutschland Über Alles, onde os militares alemães são silenciados pelos refugiados franceses, desempenha um papel preponderante na promoção de ideais democráticos. Porém, apesar da componente histórica não poder ser dissociada da narrativa, é muitas vezes abafada pela aura sentimental trazida pelo triângulo amoroso, que contribui para a instituição desta bolha cor-de-rosa, um tempo outro que serve de meio de contemplação e transcendência à mera condição humana.
Quer se desenrole numa cidade de perdidos e achados no norte de África, quer num outro sítio, é certo que Rick Blaine, o americano expatriado dono do café onde se passa a maior parte da ação, teria a sua vida virada do avesso pela chegada de Ilsa Lund independentemente do espaço onde se encontrassem. Uma mulher refugiada fascinantemente misteriosa que, como afirma Umberto Eco3, nunca saberia para qual homem olhar com mais ternura – Laszlo, o seu marido no tempo presente, ou Rick, o seu amor eterno porque efémero – já que o seu destino nunca seria escolhido por si, mas a despeito da sua vontade.
Somos, portanto, confrontados com o fim derradeiro – dois corações frágeis que choram por provar o fruto amargo da separação, suscetíveis a qualquer vicissitude e mudança no mundo. Feitos de barro e eivados de saudade, apercebem-se que o sentimento cresce fora deles e não se encontra nos seus domínios de ação recuperá-lo, onde apenas lhes resta o amor de Paris infinitamente perdido e encontrado nos confins da memória.
Catarina Gerardo
[Foto em destaque: Casablanca (1942), de Michael Curtiz © Direitos reservados]