- Diz-me, aqui e agora.
- Quero escutar-te, dar-te um lugar de fala, um espaço em que te sintas confortável na tua própria intimidade.
- Contarás somente o que quiseres e se se proporcionar. Não forçarei o diálogo.
Premissas e promessas que poderiam ter sido estabelecidas a priori da realização deste telefilme. Encomendado pela estação televisiva francesa TF1, Aujourd´hui, dis-moi (1980), um dos episódios da série Grand mères, apresenta uma compilação de três entrevistas a mulheres judias sobreviventes do Holocausto. Dirigidas pela própria, Chantal Anne Akerman (1950-2015), autora fundamental do cinema moderno do século XX, viaja de porta em porta sobre o pretexto das entrevistas. Vemos o seu percurso pelas ruas de Paris, a receção calorosa que a aguarda em cada uma das casas, as divisões interiores onde decorrem as entrevistas (e a meu ‘ver’ pouco mais…). Mas não ficamos por aqui. Tudo aquilo que não vemos, ouvimos.
Nascida no seio de uma família judaica, em Bruxelas, no pós-guerra, Chantal viu a história da sua família e da sua vida marcada pelas atrocidades cometidas contra os judeus. Deste modo, faz sentido olhar para Aujourd´hui, dis-moi como um esforço inegável de encontrar as suas origens e de se conciliar com o seu passado (temática que está, aliás, presente em toda a sua obra cinematográfica). No entanto, acredito que a sua herança judaica se reflita além da questão temática.
Ora, a verdade é que na tradição judaica se encontra uma proibição de produzir e de conservar imagens com o intuito de proteger o monoteísmo. Compreender a relação do judaísmo com as imagens foi o ponto chave para a confirmação ou, pelo menos, para a abertura de um longo caminho de especulação sobre a influência desta cultura na forma de fazer cinema de Akerman. Afinal, se a imagem é condenada, torna-se expectável que a oralidade e a audição se desenvolvam especialmente. Fazer um filme que deva a sua existência (ou pelo menos grande parte desta) àquilo que se ouve, parece ser o resultado de uma vida imersa nesta afinidade especial com a tradição oral. E, neste sentido, parece-me pertinente dedicar um ensaio à análise dos espaços e espectros sonoros que emergem em Aujourd´hui, dis-moi.
Antes de mais, permitam-me esclarecer a utilização da terminologia ‘espaços sonoros’. Está em causa a compreensão dos novos espaços que surgem na sequência da exploração do potencial máximo do cinema sonoro. A questão que se coloca é: E que espaços são estes?
Refiro-me, em primeiro lugar, a espaços de interioridade e de exterioridade. Por um lado, o som corresponde a um movimento de exteriorização daquilo que é íntimo. Entre refeições partilhadas, bolos e cafés, é através da fala/escuta que a intimidade destas mulheres se abre ao exterior. Exposta, primeiramente, nas suas casas perante uma câmara e um gravador, a sua intimidade chega-nos (a nós, espectadores) sob a forma de histórias contadas ao ritmo de quem recorda aquilo que viveu. Por outro lado, o som corresponde também a um movimento de interiorização daquilo que é exterior. Conhecer o mundo, dentro dos limites da condição humana, passa necessariamente por ouvi-lo.
Mais do que compreender estes movimentos de exteriorização/interiorização, interessa-me a relação entre a sonoridade que parte do íntimo e aquela que vem do exterior. Neste caso, o som do filme Aujourd´hui, dis-moi é o resultado de uma fusão entre a narração da intimidade e os sons da cidade envolvente (barulho de carros, buzinas, etc.…). De que forma se relacionam estes espaços sonoros? Qual o significado desta relação? É através do som que se delimitam dois mundos paralelos, quase intocáveis, e que funcionam independentemente um do outro. Temos o mundo das vivências das mulheres entrevistadas, sonorizado pela sua voz e narração, e o mundo que as envolve: a cidade de Paris, confusa e barulhenta. Frequentemente, os sons da cidade sobrepõem-se ao decorrer da narração. E faz sentido que assim o seja, na medida em que também a cidade, campo social e político, se sobrepôs à sua experiência enquanto mulheres judias. A sua voz era constantemente abafada pelos seus discursos e vozes dominantes. Trata-se de uma cidade que não as quer ouvir, que as interrompe.
Deste modo, ao falar de espaços sonoros torna-se imperativo falar do som do cinema como um espaço de emancipação. Ainda que Chantal Akerman o tenha evitado assumir e que seja perigoso reduzir a sua obra cinematográfica a uma agenda temática, a verdade é que esta tem uma índole inegavelmente feminista. Traz consigo a visibilidade de pessoas e de gestos que até à data nunca haviam sido mostrados no cinema.
Em Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), por exemplo, acompanhamos três dias na vida de Jeanne Dielman, uma mulher belga, dona de casa e prostituta. É, efetivamente, através da colocação em cena de uma coreografia de gestos mundanos minuciosos (preparar refeições, limpar a casa, etc.…) que a existência desta mulher ganha visibilidade e, até certo ponto, legitimidade. Por sua vez, também em Aujourd´hui, dis-moi acompanhamos alguns gestos quotidianos das mulheres entrevistadas. No entanto, e ainda que a presença destes gestos no filme tenha relevância, a concretização deste espaço de emancipação feminina deve-se ao ‘dar voz’, ao ‘passar a palavra’ a quem foi outrora silenciado. São 46 minutos produzidos para a televisão em registo documental. Mas mais do que isso, são 46 minutos nos quais cada uma das mulheres tem a possibilidade de se (auto)documentar. “I could go on for another eigth days and i would still have things to tell.” São palavras proferidas por uma das entrevistadas que nunca tendo oportunidade de falar, tem tanto para dizer sobre e para o mundo.
Antes da chegada de Chantal a cada uma das casas vemos as senhoras à janela. Na ausência de tempo para formular respostas satisfatórias sobre o significado deste ato, limito-me a esboçar algumas questões que gostaria de ver respondidas. Será este um mero ato resultante da curiosidade e ansiedade em receber a sua convidada? Ou, pelo contrário, será a saída para a janela já uma antecipação da sua exteriorização, uma tentativa de emancipação que apenas se concretizará com o gesto de fala/escuta?
Para além dos espaços sonoros de interioridade/exterioridade e de emancipação que emergem em Aujourd´hui, dis-moi, é importante analisar o papel do som na construção cinematográfica de espaços de memória. Por definição, a memória (do latim memorĭa) é a faculdade psíquica através da qual adquirimos, armazenamos e (re)evocamos o passado. Paul Ricoeur (1913-2005) foi um filósofo francês, autor de inúmeras obras notáveis, entre as quais: “Memória, história e esquecimento”. Esta não é apenas uma obra sobre a memória, temática já vastamente explorada na literatura. Trata-se, pelo contrário, de um lembrete da sua importância para que a História não se repita. Ricoeur defende o conceito de ‘dever de memória’ e o cinema tem, a par de outras formas de arte, o dever de o concretizar.
Neste sentido, destaco duas formas distintas de (re)evocação do passado através do cinema. Por um lado, temos a recuperação da memória através da imagem. Por outro lado, temos o som enquanto ferramenta para a recuperação e reconstituição da História. Significa isto que aquilo que ouvimos/dizemos, enquanto indivíduos e sociedade, é determinante no processo de construção da nossa memória individual e coletiva, respetivamente. Para ilustrar as diferentes formas de evocação do passado, tomemos como referência dois exemplos: A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, e Shoah (1985), de Claude Lanzmann. Aquilo que os distingue reside principalmente na abordagem que fazem de um mesmo acontecimento, o Holocausto. Enquanto A Lista de Schindler recorre à produção imagética para recuperar/reconstituir o passado, Shoah não inclui qualquer imagem dos campos de concentração. O filme é construído tendo por base o som, isto é, a voz e narração de quem de alguma forma se cruzou com as atrocidades cometidas (sobreviventes dos campos de concentração, guardas, habitantes das redondezas).
À sua semelhança, também em Aujourd´hui, dis-moi o passado é reconstruído através da narração. Não temos imagens, e ainda assim, somos embebidos pelas suas palavras, viajando entre vivências quotidianas mundanas e experiências dolorosas. Não temos imagens dos acontecimentos relatados e, se me é permitida a subjetividade da consideração, é preferível que assim o seja. Não que a imagem seja necessariamente má. Não pretendo cair numa concepção platoniana que refute as imagens. No entanto, parece-me significativo dar um lugar de protagonismo e de fala às testemunhas – agentes fundamentais no exercício do ‘dever da memória’. “A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado” (SARLO, 2007: 24). Deixemo-la, portanto, para quem a viveu de facto.
Em “A Statement (on Sound)”, Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov refletem sobre as potencialidades do som como um elemento de montagem. Contrariamente à abordagem mais comercial do cinema sonoro, em que o som corresponde (quase sempre) àquilo que se vê, estes defendem uma técnica de montagem assíncrona do som e da imagem. E de que forma é que isto se relaciona com o filme em questão?
Ora, ao longo deste, ouvimos intercaladamente uma voz, a voz da mãe de Chantal Akerman, também ela sobrevivente do Holocausto. Ouvimos esta voz, mas nunca vemos a pessoa a quem pertence. Deste modo, parece haver uma concordância entre esta forma de utilizar o som e as técnicas de montagem sonora outrora defendidas pelos grandes cineastas da União Soviética. Esta voz surge-nos assincronamente, aparentemente desconexa das imagens que vemos. Cabe-nos, a nós espectadores-ouvintes, descodificar o significado deste ‘espectro sonoro’. Aqueles que conhecem a biografia de Akerman e a sua forte ligação com a mãe não terão dificuldade em compreender o que pretendo dizer com ‘espectros sonoros’. Aujourd´hui, dis-moi é apenas mais uma confirmação daquilo que Akerman concretiza através da sua obra cinematográfica: uma presença invisível e omnisciente, a da sua mãe. Para além disso, carrega consigo uma reflexão sobre a potencial riqueza de significados trazida pela assincronia sonora/visual.
Até então dedico-me a tentar responder a questões relacionadas com a presença do som no cinema e o seu significado. Resta-me compreender a ausência de som, o silêncio, também ele inaugurado pelo cinema sonoro. Qual o papel do silêncio no cinema e, em especial, em Aujourd´hui, dis-moi? Marcado pela gestualidade natural de quem conta uma história, o silêncio surge (neste filme) como uma continuidade deste registo de autenticidade.
É frequente referir-se o cinema de Chantal Akerman como um cinema dotado de um tempo “especial”. Entre as muitas hipóteses que explicam esta temporalidade específica, parece-me que a resposta – ou pelo menos parte desta – pode residir na dialética incessante entre som e silêncio. “Faço cinema porque não tenho coragem de cumprir a escrita” são palavras da realizadora em Lettre d’une cineaste. Revelam a ligação íntima da sua obra com a escrita que pode ser, em última instância, discurso falado. O tempo que vemos passar nos filmes de Chantal é um tempo apoiado no ritmo da própria discursividade: um tempo real, com espaço para pausas discursivas onde se bebe chá e se come silenciosamente. Um tempo que se dá tempo a si próprio para que o passado possa ser revisto, reformulado e sentido novamente.
[Foto em destaque: Aujourd´hui, dis-moi (1980), de Chantal Akerman © Direitos Reservados]
Maria Inês Mendes