Rever 𝑭𝒍𝒆𝒆 – 𝑨 𝑭𝒖𝒈𝒂 é reviver as experiências tão diversas, quando traumáticas de tantos refugiados, nesta animação documental. Mas é também a meio da realidade que ficamos ao rever o clip dos A-ha, Take on Me.
‘Refugiado’, a expressão que adquire novo e redobrado significado nos dias que correm. Razão pela qual também Flee, a maravilhosa animação documental do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, merece urgência redobrada. Com a particularidade de a reflexão psicológica ser entrecortada com planos de verdadeiro making off, o filme dentro do filme, e elementos puramente documentais. Mas é também na forma brilhante como Rasmussen assume e domina esta complexidade que nos devolve este filme absolutamente marcante para os dias de hoje. E merecedor de todos os prémios e nomeações confirmadas nos Prémios do Cinema Europeu e nas recentes três nomeações aos Óscares, mesmo sem as vencer.
Apesar de não ser um desconhecido, pois já tinha vários documentários e curtas no activo, Rasmussen alcança uma das melhores aproximações do documento à animação, mesmo quando A Valsa de Bashir, de Ari Folman, de 2008, vem necessariamente à memória. A materialização dessa proximidade de géneros e técnicas, em fusão com a complexidade da memória, é-nos oferecida logo na abertura do filme, nos esboços imprecisos iniciais, e na voz de Amin ao sugerir um significado para palavra ‘casa’, como o “lugar onde possamos permanecer, e não tenhamos de partir. Algo que não seja um espaço temporário.”
Corte para a cidade de Copenhaga, vista do céu, e para o tapete persa, onde Amin se irá deitar. Sim, esta será também uma viagem terapêutica. Novo corte para Cabul, em plenos anos 80, imprimindo ao filme uma brusca dinâmica, impulsionada pelo estonteante tema dos A-ha, Take on Me, mostrando um adolescente Amin a dançar e correr pelas ruas de Cabul como o seu walkman nos ouvidos. E foi ao rever este clássico dos anos 80, no Youtube, para precisar a sua data (e escutá-lo de novo na íntegra) que ocorreu uma estranha coincidência. Ou seja, em que o próprio clip Steve Barron, o famoso realizador irlandês de videoclips, responsável por alguns dos melhores videoclips dessa década – como Billie Jean, de Michael Jackson, Summer of 69, Brian Adams, ou Don’t You Want Me, dos Human League, para citar apenas alguns – nos sugere uma inesperada proximidade estética com Flee. Em particular, a forma como a animação se interliga com a imagem real, como pode ser constatado na recente versão restaurada em 4K (depois do tema ter ultrapassado um bilião de visualizações).
Algo que no clip é encarado quase como uma porta de entrada para esse mundo ‘animado’. É claro que nada disto retira o mérito de Rasmussen. Mesmo que as evidências sejam inegáveis. Em particular, aquela coincidência em que a imagem desenhada pisca o olho à protagonista (no clip), no fundo, idêntico ao ‘piscar de olhos’ estrelado que a figura de Van Damme, no poster, faz ao jovem Amin, no seu quarto em Cabul. Fica a curiosidade.
Fica para a história a evocação da memória traumática do companheiro Amin, que Rasmussen conheceu quando tinha apenas 15 anos, e se prolongou depois numa vida em comum. Desde a fuga do Afeganistão, fruto da tomada do poder dos Mujahideen, passando pela experiência traumática na Rússia, a fuga pelo Mediterrâneo, em que esse passado parece materializar-se nas imagens que vemos hoje na televisão com os refugiados na Europa. Ou então, quando se serve de imagens puramente documentais, ou opta ainda pela opacidade de momentos mais traumáticos. Possivelmente, a forma (só aparentemente) simples de lidar com este trauma do passado, mesmo quando disposta a assumir todas as vertentes e que acaba por se revelar tão satisfatória. Seja pela honestidade do registo de sobrevivência e aceitação, ou pelo sentimento que Rasmussen demonstra a Amin ao longo deste filme maravilhoso. Ou num sonho, como se ambos se fundissem na animação do mesmo clip dos noruegueses A-ha. Um belíssimo filme. A não perder.
[Foto em destaque: ©NEON]