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Karen e Alice: Como o Cinema aproxima/distância a marioneta da Uncanny Valley

Quando estamos num museu de figuras de cera, não é apenas a célebre e infame câmara dos horrores tão discutida que incita em nós sentimentos negativos. Pelos longos corredores nunca nos sentimos seguros com os olhares daquelas figuras miméticas em cima de nós: nem humanas, nem objetos. Várias razões verificam-no (sentimo-nos observados, temos medo que ganhem vida, etc…), mas independente destas, é uma verdade universal. Esta história não acaba com as figuras de cera, isto é observável com qualquer objeto ou coisa que se tenta aproximar duma aparência humana através da mimese. Foram mencionadas figuras de cera, mas podiam também ter sido certos tipos de robôs, esculturas, bonecos e o que é o foco deste ensaio: marionetes, fantoches e outros objetos de espetáculo.

Um termo é crucial: Uncanny. Normalmente é traduzido para “estranho”, mas na realidade é uma palavra com um significado mais específico, tendo um contexto histórico, psicológico, social e cultural muito preciso. O termo, de forma mais concreta, está ligado, não a algo simplesmente misterioso, mas à experiência psicológica de percecionar algo estranhamente familiar. O termo é usado para ilustrar o sentimento ou processo psicológico do ser humano quando se depara com algo que se encontra delicadamente equilibrado na linha ténue entre completamente alienígena e estranhamente demasiado familiar. Uncanny foi pela primeira vez utilizado por Ernst Jentsch num ensaio chamado Das Unheimliche. Neste ensaio Jentsch foca-se no conto Der Sandmann de E. T. A. Hoffman, famoso pela sua personagem Olympia: uma boneca exatamente igual a um ser humano (que mais tarde acaba por ganhar vida). Já neste texto, o uncanny começa a ser ligado a figuras como bonecas e marionetas, objetos miméticos de algo vivo (aqui também já ligado a medos racionalizados, como o de “ganharem vida”).

A doll which closes and opens its eyes by itself, or a small automatic toy, will cause no notable sensation of this kind, while on the other hand, for example, the life-size machines that perform complicated tasks, blow trumpets, dance and so forth, very easily give one a feeling of unease. (Jentsch, 1906)

Outro autor, e provavelmente o mais célebre, a trabalhar o uncanny foi Sigmund Freud no seu ensaio homónimo. Freud vai desenvolver esta definição como encontrar “o estranho no aparentemente normal”, algo que não só reforça entendimento prévio do termo, como lhe acrescenta novas conotações.

I will say at once that both courses lead to the same result: the “uncanny” is that class of the terrifying which leads back to something long known to us, once very familiar. (Freud, 1919)

Na segunda metade do século XX, este termo evolui para a sua fase final célebre. Masahiro Mori, um pioneiro no campo da robótica, cunha, na década de 1970, a expressão “uncanny valley” (nesta altura ainda só aplicado ao seu campo de trabalho). Este conceito tem referência a um vale físico numa representação gráfica da teoria de que robôs com base na figura humana vão ser cada vez mais aceites pelo ser humano, quanto mais corretamente se assemelharem. Todavia, o que Mori mostra com a sua representação gráfica é que esta não é uma curva em subida permanente, ou seja, existe um “vale”, ou uma descida na aceitação em relação à semelhança. Este vale representa a descida drástica de aceitação quando estas máquinas se começam a assemelhar de forma demasiado apurada e realista ao seu objeto (sem serem ainda absolutamente perfeitas). Isto incita no ser humano um sentimento muito forte de uncanny, uma certa inquietante estranheza. O termo, como pode ser visto, é muito específico a uma certa situação, mas o termo de uncanny valley em uso neste ensaio está mais ligado à sua apropriação mais expansiva que se encontra na nossa cultura geral. Este conceito foi estabelecido nos anos 1970 e até hoje verifica-se uma lenta entrada do termo no zeitgeist cultural em que nos inserimos. Isto deu-se em dois passos. Inicialmente o tema foi expandido para se referir a qualquer coisa que se assemelha a um humano e se encontre nesse ponto específico do vale hipotético; mais tarde, o termo começou a ser usado para se referir a qualquer coisa de característica mimética que se aproxima demasiado do objeto da sua mimese (sem esta ser perfeita). Para exemplificar melhor esta segunda evolução, seria interessante estudar a reação à tendência viral que se popularizou na internet, em 2020, da criação de bolos miméticos hiper-realistas. Pode parecer estranho, no entanto, por alguma razão, nesse ano, vídeos de bolos que imitam muito realisticamente objetos ou coisas (sapatos, garrafas, latas e até bebés…) a serem cortados, revelando que não eram a coisa que imitavam, mas sim um bolo, tornaram-se extremamente populares (principalmente no Instagram). Como estes bolos eram feitos não interessa muito para esta discussão, o que é fascinante é a forma como as pessoas reagiram. Em reação a esta tendência ganhar uma popularidade absurda, desenvolveu-se uma piada que se espalhou mundialmente, maioritariamente através do Twitter. Esta piada tinha diversas variações, sendo a sua base um medo jocoso de um futuro distópico ou cenário aterrorizante onde nada é o que parece: tudo é bolo (num momento de abraço a alguém querido, essa pessoa desfaz-se: a sua pele em pasta de açúcar, as suas entranhas em recheio de chocolate…). Pode parecer completamente ridículo, não obstante, mostra perfeitamente como a experiência psicológica do uncanny valley ultrapassa a robótica e até a mimese humana, sendo uma experiência universal que se liga a qualquer objeto camaleónico (e simultaneamente mostra também as justificações do medo do uncanny: algo não é o que parece, etc). 

Antes de abordar o tópico principal, uma rápida ligação tem ainda de ser feita: a das marionetas com o uncanny. As marionetas (neste caso referindo-se a qualquer objeto usado num espetáculo ao qual seja dado vida e movimento) podem, então, ser vistas provavelmente como o exemplo perfeito do uncanny, pois não só têm quase sempre uma característica de imitação (seja ela de um ser humano ou não), como também lhes é “dada vida” através de movimentos controlados (aproximando-se dos robôs aos quais Mori se referia). As marionetas são normalmente utilizadas em artes do espetáculo, mas este texto apenas se focará na sua relação intermedial com o cinema: num filme, a que nível e de que modo é que a técnica e as convenções próprias deste meio artístico afetam e interagem com estes objetos (principalmente no que toca à sua relação com o uncanny e a uncanny valley). Esta exploração será feita a partir do contraste entre dois filmes muito diferentes: Neco z Alenky de Jan Švankmajer (traduzido como Alice, sendo esse o nome pelo qual irá ser referido) e Superstar: The Karen Carpenter Story de Todd Haynes (que será tratado apenas como Superstar no resto do ensaio, por uma questão de brevidade e melhor compreensão).

Jan Švankmajer é um realizador checo surrealista, mundialmente famoso nos círculos de cinema de animação e arthouse devido às suas numerosas e inovadoras curtas e às suas menos numerosas, igualmente fantásticas (no verdadeiro sentido da palavra), longas-metragens. Švankmajer é um surrealista na verdadeira definição do termo enquanto movimento artístico, e não no sentido lato da palavra: um artista que explora uma realidade muito ligada ao inconsciente e que se baseia numa realidade que não é nem a nossa realidade absoluta, nem a realidade do sonho, uma “surrealidade” (como dizia o “fundador” do movimento surrealista, André Breton). Švankmajer é conhecido no seu cinema, não só pela sua vertente surrealista, mas também devido ao uso recorrente de duas artes diferentes que incorporava sempre na sua obra: o teatro de marionetas e o stop-motion (ou animação de volumes). Enquanto aqui são mencionadas marionetas, estas não se limitam à definição de dicionário, algo restritiva, de “Boneco manipulável, geralmente através de cordéis e engonços ou através da mão introduzida numa espécie de luva que constitui o corpo do boneco”. É proposta uma expansão que Švankmajer tentava atingir. No seu cinema, quando se fala de marionetas, o referente de “boneco manipulável controlado por um titereiro” está sempre em questão, no entanto, este não se restringe às limitações mecânicas desta definição. Pode ser qualquer objeto (figurativo) que é manipulado pelo realizador. Muitas vezes é já introduzida a animação de volumes, permitindo uma manipulação destas marionetas sem qualquer visível elemento mecânico da mesma (com raras exceções como o Chapeleiro Louco de Alice a ser abordado). Em segundo lugar, para continuar a falar da animação de volumes, esta não se restringe só ao controlo das marionetas, é também uma técnica utilizada para controlar pontualmente alguns objetos aos quais não são dados “vida” (como às marionetas), e também de forma estilística para criar um novo ritmo de movimento (um movimento quebrado, fluido que habita praticamente todos os seus filmes). Alice, tal como o nome indica, é um filme baseado no seminal livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Este livro trata a história de uma rapariga nova que se depara, depois de seguir um  coelho por um buraco no chão, com um mundo fantástico onde a lógica humana não se aplica. Esta obra está inserida dentro do género do non-sense, sendo as características mais marcantes da mesa a subversão da lógica comum e a estranheza não justificada (e não justificável). Face a estas características, pode-se facilmente classificar esta obra como proto-surrealista (tendo sido escrita praticamente um século antes do surgimento do movimento artístico). Sabendo isto, é de fácil compreensão a escolha de Švankmajer na obra a adaptar para o cinema. Mas existe outro aspeto que vai ao encontro direto com o tema aqui a ser explorado. No livro original, embora se trate do tema de non-sense, nem tudo é completamente abstrato. O que Lewis Carroll pega em referentes do mundo em que vivemos (maioritariamente ligados à infância) e subverte-os de forma a provocar uma assoberbante estranheza. Será uma inquietante estranheza? Não. Carroll podia muito facilmente ter deixado a sua obra cair no reino do uncanny.  Tal não acontece. O essencial a entender é a forma em relação à dupla face do conteúdo. O conteúdo estranho, mesmo dentro da sua estranheza, tem uma certa neutralidade. O conteúdo é a matéria prima a ser trabalhada,  não causa ela em si mesma este efeito no espetador. O que acontece, então, é que a escrita vai ser o elemento que empurra ou afasta este conteúdo estranho do uncanny. A forma influencia o conteúdo. Não só verificamos isto na obra de Carroll, mas também no filme de Švankmajer. A técnica e forma do cinema e da arte das marionetas é que vai influenciar o conteúdo, neste caso empurrando completamente a história até cair no fundo do abismo da uncanny valley. Sabe-se de imediato que Švankmajer não está interessado na história de Lewis Carroll como um simples exemplo de maravilha infantil:

A atração temática de Švankmajer pela infância portanto representa, não uma ânsia por uma prévia inocência, mas a articulação de um perdido conjunto de hábitos, princípios de pensamento e lógicas. De facto, “inocência”, segundo Michael Richardson, “não existe [nos seus filmes],” porque “os terrores [do amadurecimento] nunca são superados.” O perigo real vem, não do enfrentar esses terrores, mas em fingir que já não existem ou que talvez nunca tenham existido (Keith Leslie Johnson, 2017)*

Ao analisar o Uncanny deste filme, a primeira coisa que chama à atenção são as marionetas. As marionetas dividem-se em quatro categorias que devem ser analisadas individualmente. A primeira é a categoria dos objetos apropriados. Švankmajer não se limita apenas a construir as suas marionetas de forma tradicional, optando por remover objectos (normalmente utilitários) do seu propósito de existência, criando uma mistura de objetos que se assemelha à personagem em causa e à qual depois lhes dá uma nova vida. Švankmajer, no seu famoso decálogo onde dita os seus princípios para cinema de animação, afirma: 

Animation isn’t about making inanimate objects move, it is about bringing them to life. Before you bring an object to life, try to understand it first. Not its utilitarian function, but its inner life. (Švankmajer, 1999)

Este “mandamento” demonstra a forma como Švankmajer perceciona estes objetos que usa. Ele não os usa para contar as suas histórias, ele conta as histórias desses objetos (o que é ainda mais fascinante se se pensar na forma como o objeto está a representar um referente diferente: o objeto conta uma história exterior a ele, mas que só ele pode contar). Mas como é que isto promove o ambiente uncanny? Ao criar estas marionetas dá-se uma cisão dupla do referente. Pode-se olhar para a marioneta de duas formas, mas nenhuma delas vai ser reconfortante. Em primeiro lugar, a marioneta como o que ela está a tentar representar, o que incita um sentimento bizarro devido ao reconhecimento pelo espetador da representação, em contraste ao reconhecimento da sua estranheza formal (construída por outros objetos). Em segundo lugar, a marioneta como um conjunto dos objetos que a constituem, também bizarro devido à forma como, mesmo sendo os objetos coisas reconhecíveis do mundo humano, a sua mistura e a forma como são conjugados vão encaminhá-los da zona do objeto mundano reconhecível para o da representação de algo exterior e fantasioso. Isto pode ser visto, por exemplo, na personagem da Lagarta, uma personagem amigável (embora misteriosa) e reconhecível do livro de Carroll, aqui representada por uma meia com uma dentadura e dois olhos de vidro. Estes objetos não são só causadores do uncanny devido à sua aproximação do não-humano ao humano, mas também por serem símbolos da morte, não estando só presentes neste tipo de marionetas.

Isto acabaria na segunda categoria, marionetas da morte, uma categoria de marionetas muito presente na obra de Švankmajer, que se destaca principalmente neste filme. O que se entende com marionetas da morte, são marionetas feitas a partir de animais mortos, sejam estas taxidermias ou apenas esqueletos modificados. 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O interessante nesta categoria de marioneta é a subversão completa do uncanny. Em vez de ser uma aparência viva de algo morto, é um processo com mais etapas. Na história já mencionada de E.T.A. Hoffman, Olympia, a boneca, é reconhecida como um dos grandes elementos do fenómeno no conto, devido a ser uma figura estática sem vida que é animada (sendo o animismo um dos grandes causadores do uncanny, segundo Freud). Nestas marionetas, o processo passa por três passos. Estes crânios, ossos e taxidermias são reais: já tiveram vida, sendo essa a primeira etapa. Depois disso, estes animais foram mortos e transformados em taxidermias, a segunda etapa deste processo e também  o primeiro passo para alcançar o uncanny: taxidermias em si, mesmo as que não são marionetas, são normalmente acusadas de incitar este fenómeno no observador (seja isto pela ideia de que algo está morto enquanto devia estar vivo, então existindo a possibilidade de ganhar vida a qualquer momento, seja pela sua atitude fantasmagórica perante a  morte). A terceira etapa é a da animação das marionetas, a criação derradeira do uncanny nestes objetos: algo que já foi vivo, devendo estar morto, e que mesmo assim vive, confirmando o medo (este movimento é natural, mas não devia ser nestas circunstâncias: mais normal que o normal). Outro grande elemento nestas marionetas é o de muitas delas estarem ligadas ao conceito de amputação, sendo por exemplo, só crânios, dando a ideia de um animismo mórbido, macabro e impossível. 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O terceiro e o quarto tipo de marionetas são menos comuns: as marionetas clássicas e a boneca. A marioneta clássica não se encontra muito presente no filme, mas o momento em que aparece é dos mais marcantes. O principal exemplo desta categoria de marioneta é o do chapeleiro louco: uma marioneta no sentido mais clássico da palavra, controlada por fios visíveis que sobem até céus desconhecidos (seria importante ler The Clown Puppet de Thomas Ligotti, um escritor eternamente fascinado com o horror das marionetas e o animismo desse vazio). 

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

O quarto tipo de marioneta toma a forma de Alice quando diminui de tamanho. Ambas estas marionetas funcionam no nível básico do uncanny já explorado anteriormente, o qual uma boneca ou marioneta tradicional apresentam.  A grande diferença entre elas é o facto de uma ser animada e a outra não (o que vai dar de encontro ao próximo tópico onde isto será explorado de forma mais desenvolvida: a animação).

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

A animação é das partes mais importantes de qualquer filme do Švankmajer. Durante muito tempo, o cineasta fez curtas-metragens que a ela se restringiam, mas a mistura entre live-action com este meio começou a ser mais explorada pelo autor nas suas longas-metragens. As últimas têm sempre um nível variante de live-action (algumas até tomando o ator humano como papel principal), contudo, contêm sempre, sem exceção, o uso fulcral da animação. Esta é utilizada em duas grandes vertentes: a animação de marionetas e a “hiper-animação”.

A animação de marionetas já foi de certa forma explorada em parágrafos anteriores, mas não o suficiente para chegar ao seu núcleo. Esta expressão artística é dos elementos mais importantes e responsáveis pelo ambiente uncanny do filme, podendo até ser estudada em separação da marioneta. O referente que dela existe é o de algo que tem um titereiro, alguém que a controla. O que a animação neste caso efetua é retirar “as cordas” ao objeto, ou seja, o elemento que permite o espetador criar uma ligação entre ele e o seu titereiro. A marioneta já é considerada um dos grandes exemplos do uncanny, devido à semelhança ao seu referente e ao animismo que implica. Todavia o titereiro e as suas cordas funcionam como um cobertor reconfortante que garante que esta não passa de um objeto. Švankmajer aumenta o desconforto ao retirar este cobertor de segurança, deixando o espetador a sós com o uncanny.  O cineasta escolhe então estrategicamente também mostrar os fios de uma marioneta: a do chapeleiro louco. O seu artifício fica em completa evidência, ou seja, em vez de ser só um objeto que é suposto tomar o lugar de outra coisa, é uma marioneta. O espetador reconhece a marioneta, como o que ela representa e agora também como marioneta em si. Vê que está a ser controlada, mas não sabe pelo quê. Isto amplifica o horroroso mistério, mas agora para outro campo: o titereiro invisível. 

O outro tipo de animação usada é a “hiper-animação”. Este termo é aqui usado em referência à animação do real, ou seja, das filmagens live action. Esta divide-se em duas grandes categorias, a do possível e a do impossível. A do impossível, contrariamente ao que o nome diz, é a mais “normal”. Esta designação refere-se a quando Švankmajer anima objetos ou pessoas (não marionetas) de forma a conseguirem realizar ações que não conseguiriam no mundo real (tomemos como exemplo a transformação de Alice na boneca, sendo este momento já um crossover entre a hiper-animação e a animação de marionetas, ou até o momento em que a Alice entra dentro da gaveta).

Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©
Něco z Alenky, Jan Švankmajer ©

Embora isto seja bizarro, obriga-nos a aceitar uma realidade alienígena à nossa. A hiper-animação do possível é mais bizarra. O realizador pega em ações de pessoas ou objetos que poderiam ser simplesmente filmadas e quebra-as em fotogramas, animando-as em vez de as filmar “normalmente”. Esta técnica encontra-se muito presente nos filmes deste realizador, sendo o exemplo mais notório provavelmente o da curta-metragem Food. O efeito que ela tem no espetador é a de este estar a ver uma ação normal na qual algo está ligeiramente errado: o espetador perceciona o movimento, mas este está diferente o suficiente do seu referente real para causar um sentimento uncanny. O oposto disto seria, no cinema digital, a utilização de 60 frames por segundo ou outro tipo de FPS elevado: enquanto neste filme a estranheza vem do movimento ter “frames a menos”, aproximando-se do real sem chegar lá, nestes exemplos do cinema digital a estranheza vem de um sentimento de a imagem ser “mais real que o real”, aproximando-se demasiado da nossa perceção do movimento fora do cinema (algo à qual não estamos habituados).

Seria impossível dar como terminada uma análise de Alice sem mencionar a sua realização. A realização de Švankmajer é interessante devido à sua forma de aproximar o conteúdo da estranheza e do uncanny. Este efeito é alcançado através de uma linguagem maioritariamente clássica e linear no que toca à realização e apresentação da narrativa, ocasionalmente quebrada por chamadas de atenção à sua presença. O que esta linguagem atinge é o embalar do espetador numa consciência narrativa no qual se sente imerso (mesmo com o seu bizarro conteúdo) até ser completamente quebrado por momentos muito artificiais e pouco naturais, como os planos de pormenor da boca de Alice.

Em contraste, é possível concluir este estudo com uma análise do filme Superstar: The Karen Carpenter Story, filme realizado por Todd Haynes, em 1988, que conta a história de vida de Karen Carpenter (a célebre vocalista da banda The Carpenters), focando-se principalmente na luta com o seu distúrbio alimentar (anorexia nervosa). O que esta obra prova é que a técnica cinematográfica, embora seja normalmente usada para exacerbar o sentimento de uncanny causado pelas marionetas, pode também servir para o amenizar.

Neste caso, encontram-se em jogo vários elementos que contribuem para este efeito. Um dos principais é o seu contexto. Este filme usa bonecas e bonecos barbie que modifica e manipula.

Superstar: The Karen Carpenter Story, Todd Haynes ©

Estes objetos, tirados de contexto, muitas vezes seriam ligados ao sentimento de uncanny (brinquedos como bonecas são elementos recorrentes no cinema de terror), mas o que Todd Haynes faz é explorar meta textualmente o contexto sociocultural em que se inserem. Acima de tudo, Haynes quer criar uma identificação com estes bonecos, ou seja, quer estabelecer pathos:

Bem, a ideia de fazer um filme com bonecas na verdade veio antes de qualquer outra coisa. Eu vi um pequeno trailer promocional a preto e branco na televisão – um excerto vintage de TV dos anos 50, que introduzia a Barbie ao público Americano. E tinha uma pequena cena interior em miniatura com a boneca sentada pela sala de estar, e depois a barbie entrava e mostrava o seu novo vestido à Midge e também era intercalado com cenas live action- uma rapariga jovem a abrir a caixa de correio, filmada de dentro da caixa de correio, a receber o seu correio do clube de fãs da Barbie. E eu fiquei muito intrigado com a ideia de fazer uma narrativa bastante direta a beber de formas populares pré-existentes, mas simplesmente substituindo atores reais com objetos inanimados, com bonecos. E sendo muito cuidadoso e detalhado de forma a provocar o mesmo tipo de identificação e investimento na narrativa como um filme real conseguiria. (Haynes, 1989)**

Estes bonecos estão ligados à nossa infância, reconhecemo-los por os termos usado como brinquedos, tendo nós sido os seus manipuladores (ou os titereiros). A primeira escolha importante que Haynes faz é a de não usar animação stop motion, mas sim manipular os objetos como marionetes clássicas. Mesmo tendo o titereiro fora de campo, isto aproxima os objetos à nossa realidade, não de uma forma estranha, mas de uma forma familiar que nos permite estabelecer com eles uma ligação emocional (a experiência de ver o filme é semelhante à de vermos alguém a brincar com uma casa de bonecas, criando narrativas das quais são o seu “Deus”). Outro relevante aspecto do contexto sociocultural é a iconografia da Barbie em si. Esta é uma boneca ligada muitas vezes a estereótipos de “perfeição” que a sociedade impunha no papel da mulher (mesmo que a marca se tenha afastado disso ao longo dos anos, na época em que a história se passa esta era a sua conotação). Por esta razão, faz todo o sentido usar estas bonecas para contar uma história sobre distúrbios alimentares, criando imediatamente uma ligação de forte de pathos do espectador com os objetos, reconhecendo a sua conotação e ligando-a à história real que está a ser recontada.

O outro aspecto a mencionar é o da realização. Todd Haynes é um realizador intimamente ligado ao cinema clássico norte-americano, principalmente ao género do melodrama, sendo quase todos os seus filmes um comentário ou apropriação da linguagem deste género para uma sensibilidade moderna/contemporânea. O melodrama é o género mais intimamente ligado aos sentimentos, sendo a sua base as emoções fortes (no que mostram e no que incitam no espectador). O que Todd Haynes tenta atingir com esta atualização contemporânea desta linguagem é conseguir incitar nos espectadores sentimentos fortes, um grande pathos e um grande nível de identificação com a narrativa, de forma a que o espetador fique completamente imerso (sem nunca deixar cair o filme numa simples revisão histórica do melodrama, misturando linguagem contemporânea que retira o espetador também do referente absoluto desta linguagem clássica).

Mesmo face a um único objeto ou conteúdo (marionetas), o cinema consegue completamente mudar o efeito que este tem no espectador. A câmara ajuda o conteúdo a subir o vale do uncanny, ou empurra-o para a sua falésia, mas nunca é inocente. O cinema de marionetas nunca será igual ao teatro em que se baseia.

Vasco Muralha

Bibliografia

-Bell, John. Puppets, Masks and Performing Objects. Cambridge: The MIT Press 2001

-Bingham, Adam. Directory of World Cinema East Europe. Bristol: Intellect Books 2011.

-Freud, Sigmund. The Uncanny, E-book: Penguin Books Ltd 2003

-Jentsch, Ernst. Zur Psychologie des Unheimlichen: 1906

-Johnson, Keith Leslie. Contemporary Film Directors Jan Švankmajer. Illinois: University of Illinois Press 2017

-Leyda, Julia. Todd Haynes Interviews. Mississippi: The University Press of Mississippi 2014

– Švankmajer, Jan. “Decalogue” In Vertigo, Volume 3, Issue 1. London: Closeup Film Centre 2006

-White, Rob. Contemporary Film Directors Todd Haynes. Illinois: University of Illinois Press 2013

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