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Kinds of Kindness: “I am free and that is why I am lost”

É frequente o cinema de Yorgos Lanthimos criar, mais do que um espectador, uma população observacional. Colocada num qualquer lugar de suspensão, de nenhuma descrença, mas antes de observação macroscópica, impelida a decifrar, a perguntar, generosamente incerta, intuitivamente incitada. 

Habilmente crítico, habitualmente críptico, Lanthimos, serve a sua nona longa-metragem, como um jantar de degustação de três momentos, feito apenas com produtos autóctones do seu cinema: laços de subserviência e de tirania, com recortes sexuais e sádicos, condensados nos propósitos sucintos dos protagonistas e grosso modo estruturados no reenquadramento de certos paradigmas da vida (a família, o casamento, o trabalho, as instituições, as convenções sociais).

Kinds of Kindness (2024) é um tríptico unido por uma ideia de transversalidade, a que é dada forma humana através do personagem misterioso designado por R.M.F. (sigla bordada a azul no bolso da camisa do próprio) que dá título aos três andamentos do filme. Esta transversalidade latente, permite-nos concebê-los lado a lado, desengordurando a visão de uma certa coolness sádica de Lanthimos que, por vezes, tolda a frescura do argumento e do elenco1 (ambos de altíssima qualidade), tripartidos e de sintomas que se repetem. De facto, o que pode impelir a refletir no filme desta forma alongada é a repetição, enquanto sintoma das relações abusivas, em que um tem poder sobre o outro. A repetição, é um gesto conspícuo no cinema de Lanthimos, inerente aos habitats que cria, onde ocorrem situações, miméticas de uma ideia de vida distinta do ordinário, distante da mundanidade, entre o grupo de cobaias e o grupo de observadores. 

Em Dogthooth (2009) e The Lobster (2015) esta divisão é evidente, logo à partida, pelo lugar (uma casa e um hotel, respectivamente) que contêm um conjunto de pessoas, submetidas a um conjunto de regras, motivadas por um policiamento estrito. Em The Favourite (2018), a mesma divisão assume os contornos requintados de um filme de época, abordando esta questão como uma linha fantasma: perante a corte subordinada, quem terá mais autoridade? A rainha ou aquela que a rainha imbuiu de todo o seu favoritismo? Em Poor Things (2023), esta relação entre observador e cobaia, assume outras variações, ao ser verdadeiramente saudável (ainda que literalmente construída às peças) entre um pai e uma filha, e, em suma, ao tornar dominante, a personagem que aparentemente seria submissa, numa critica à sociedade sobre o controlo que faz sobre quem lhe pode ou não pertencer.

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Kinds of Kindness, Yorgos Lanthimos © Direitos Reservados

A plasticidade própria do cinema de Lanthimos confere-lhe uma qualidade pictórica, na qual os detalhes têm uma presença ruidosa, tanto na composição dos quadros, como na sugestão simbólica dos mesmos. No primeiro andamento, é dado destaque ao romance Anna Karenina, de Lev Tolstoi, cuja extensão é amplamente conhecida (com efeito, é este aspecto que o engendra nas mãos do personagem que fica incumbido de o ler quanto antes), pautada entre as duas pulsões universais, diabolicamente presentes ao longo de todo o filme: o amor e a morte. A razão entre estas duas parcelas, serve de estrutura às formas de bondade que Lanthimos nos apresenta.

Com efeito, Kinds of Kindness é um tríptico de relações devotas em que o altruísmo, a generosidade, as formas de bondade, se alinham num sacrifício cego e absurdo, no qual se perscrutam linhas bastante reais e atuais. No primeiro andamento, esta relação é corporativa, os contornos da subserviência exigida pelo chefe (Willem Dafoe) são enquadrados nos contornos de uma relação amorosa, até que a morte os separe – pela hesitação em levá-la a cabo – se exigida. O segundo andamento, é estruturado numa relação de codependência, em que as formas de validação, de segurança, de mostrar arrependimento, de um casal chegam ao sacrifício da carne. No terceiro andamento, acompanhamos uma jornada cometida e obcecada, pela descoberta de uma profecia, que, ao que tudo indica, elevará categoricamente quem a descobrir, no âmago de uma sociedade com ideias de pureza bastante estritos. Em resumo, uma relação profissional minada de amor apócrifo, como combustível da manipulação total; uma relação amorosa sedenta de aprovação até ao sadismo; e uma relação social ansiosa e fanática, em que de qualquer noção de amor-próprio, eflui apenas uma espécie de letargia. 

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Kinds of Kindness, Yorgos Lanthimos © Direitos Reservados

Perante a dificuldade (quase inútil) em procurar deslindar o significado da sigla “R.M.F” (Yorgos Stefanakos), pode colocar-se a pergunta de outra forma: quem é R.M.F? Quem é este personagem demiurgo e silencioso que existe sem ocupar espaço, independentemente do que acreditarmos ser a sua identidade, ou a necessidade de esta existir? Por ordem cronológica da diegese, o que sabemos sobre ele é que morre, sacrificando-se pela pessoa [qualquer] que o mata; salva desinteressadamente uma [qualquer] pessoa; ressuscita no terceiro [dia] terço do filme; e finalmente, sentado à mesa, come uma sandwich, sujando-se com ketchup. Será ele Jesus Cristo, aquele que morreu para nos salvar? Aquele que se revelou na simplicidade da vida e nas atitudes diferenciadas, só mais tarde compreendidas? Ou será a necessidade de atribuir uma identidade a esta personagem, uma outra forma de encarceramento, somando-se às prisões dos protagonistas nos diferentes andamentos? Prisões estas de que Franz Kafka falava na carta ao seu pai2, com quem, como se sabe, tinha uma relação tóxica e emocionalmente abusiva: 

“É como se a pessoa fosse um prisioneiro e não só tivesse a intenção de escapar, que seria eventualmente possível, mas também, em simultâneo, a intenção de reconstruir a prisão enquanto prazeroso lugar de conforto para ele próprio. Mas se escapar, não lhe é possível reconstruir, e se reconstrói, não lhe é possível escapar.”3

Seja como for, Kinds of Kindness apresenta um conjunto de situações em que as palavras de Kafka são postas à letra, exacerbadas ao exagero habitual de Lanthimos: 

I am free and that is why I am lost”.

Sebastião Casanova

[Foto em destaque: Kinds of Kindness, Yorgos Lanthimos © Direitos Reservados]

  1. Por ordem de aparecimento: Yorgos Stefanakos, Margaret Qualley, Jesse Plemmons, Hong Chau, Mamoudou Athie, Joe Alwyn, Hunter Schafer. ↩︎
  2. Franz Kafka, Letter to his Father (1919). ↩︎
  3.  Tradução livre. ↩︎

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