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73ª Berlinale (2023) Berlinale Críticas

Manodrome: os homens a libertarem-se (violentamente) de si próprios

Os códigos da masculinidade e as ficções em torno da identidade pessoal que adotamos em sociedade são uma presença constante na personagem de Ralphie, protagonista deste Manodrome, do realizador sul-africano John Trengove. Com Jesse Eisenberg (Ralphie) e Adrien Brody (Dad Dan) nos principais papéis, o filme centra-se em Ralphie, um homem confuso do princípio ao fim do filme, que parece já não saber onde pertence nem que regras sociais é suposto seguir enquanto homem.

Com um trabalho precário como condutor de Uber, prestes a ser pai com a sua companheira Sal (Odessa Young), tudo o que acontece ao seu redor transforma-se num desafio à sua frágil masculinidade. Ralphie observa tudo com uma intensidade perscrutante, o que faz com que vista uma “cara de parvo” durante todo o filme, sendo retratado como um homem ingénuo e infantil, que cobre a cara com fita-cola por estar aborrecido em casa. No ginásio onde passa o seu tempo livre, esforçando-se para tonificar o seu corpo, a tensão homo erótica que se estabelece entre ele e os outros homens, põe-no, com esse olhar idiota, a observar os corpos de um grupo de homens negros.

É justamente essa cortina de virilidade que o filme pretende abrir, expondo a inocência de tais comportamentos. Essa confusão em que Ralphie se encontra vai fazer despertar a sua homossexualidade reprimida e fazê-lo “sair do armário” da pior das formas: cheio de fúria e raiva pelo que sente, espelhando-se no comportamento dos outros. Mais tarde, percebemos que Ralphie foi abandonado pelo seu pai e que isso terá deixado marcas fortes, abrindo espaço para uma apreciação mais psicanalítica.

Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield

Tudo isto se intensifica quando o seu amigo Jason o arrasta para uma “família de homens”, cuja figura de Dad Dan surge como guia espiritual da masculinidade. Juntos, têm reuniões onde gritam frases de empoderamento (“Eu inventei o fogo e vou tirá-lo de volta. Eu inventei o sol e vou tirá-lo de volta.”), com a intenção de os libertar das amarras da sociedade e, em particular, do sexo feminino, fazendo com que vivam em abstinência sexual.

Trengove, que se assume como realizador queer, toca nestes assuntos de forma inteligente e sensível, o que permite uma análise cuidada das várias camadas de que somos feitos, nunca julgando a sua personagem e mostrando-a um pouco como vítima de todo um sistema que nos ultrapassa e perverte as escolhas individuais. A cena final é reflexo disso mesmo, mostrando a fragilidade de Ralphie, que surge como uma criança vulnerável nos braços de um gigante, mostrando-o quase como mártir da masculinidade tóxica.

Há vários momentos que nos agarram e que vão acentuando o conflito interior e a espiral de destruição em que aquele se encontra. Por exemplo, a tensão que se cria entre Ralphie e o Pai Natal do supermercado (o realizador assume que o filme foi propositadamente filmado na época natalícia, para sublinhar a ironia do enredo) ou as cenas com os vários clientes que entram no seu Uber, incluindo uma mulher a amamentar, uma criança a quem Ralphie “rouba” o telemóvel, e um casal homossexual.

Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield

Manodrome acaba por ser frágil na sua resolução. Os melhores momentos do filme são mesmo aqueles em que a simples contemplação idiota de Ralphie sobre o mundo à sua volta cria uma tensão dramática que nos põe na sua  perspetiva, permitindo ao espectador adivinhar o que aquela mente poderá estar a pensar acerca do que vê. Isso é algo que funciona muito bem no filme. Trengove consegue, de forma inventiva, apresentar-nos uma visão curiosa sobre essa forma tóxica de masculinidade, assim como sobre os perigos do narcisismo bacoco por trás de homens que não se permitem mostrar a sua vulnerabilidade.

Ricardo Fangueiro

[Foto em destaque: Manodrome, John Trengrove © Wyatt Garfield]

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