O mais recente filme de Frederick Wiseman, Menu Plaisirs – Les Troisgros (2023), que estreou em Portugal na secção Da Terra à Lua do DocLisboa, aproxima-nos da alta cozinha da família Troisgros, que mantém há cinquenta e cinco anos, o célebre legado das três estrelas Michelin. No quinquagésimo filme da cinematografia antológica de Wiseman, a sua não menos célebre abordagem à instituição enquanto organismo vivo, onde confluem relações de poder e tensões hierárquicas, é espoletada dentro do universo hoteleiro (particularmente da cozinha) que se ramifica num outro: o da família. Em Menu Plaisirs, o espectador é introduzido numa dinâmica cíclica, partindo da lógica operativa da cozinha, desde o garde manger1, à boca de quem se senta à mesa dos restaurantes Troisgros (Maison Troisgros, Le Bois sans feuilles, e La Colline). Assim, neste filme, podemos debruçar-nos sobre a lógica operativa de uma instituição fundada há mais de cem anos, de estrutura hierárquica paramilitar, que por mais que exista à volta de algo tão simples como a comida, é célebre pelo jogo de sombras que envolve e pelo que acontece no fora de campo, antes da degustação. Algo que se pode comparar ao cinema.
A particularidade de Menu Plaisirs, é a observação de todo este empreendimento a partir de uma outra “instituição” – a família – enquanto alma do negócio, enquanto corpo comum, reunida numa lógica de criação conjunta, de legado, e que por isso convoca novamente a dimensão cíclica. Do pó ao pó, da terra à terra, sob um ponto de vista sustentável e ecológico, mas também geracional, de renovação, e de liberdade (que se adquire tanto no assumir da chefia como na passagem do legado).
O filme começa na praça de Roanne, onde os irmãos César e Leo, respetivamente chefs dos restaurantes Le Bois sans Feuilles e La Colline, escolhem contemplativamente alguns ingredientes, antes de se reunirem com o pai, Michel, numa das mesas redondas do restaurante. Discutem os pratos da temporada e os ingredientes a usar em função da época. Como é característico no seu cinema, Wiseman constrói o filme através de dois tipos de cenas: as sequências de instrução visual que, passo a passo, nos aproximam de toda uma paisagem operativa, desde a visualização mental e verbal do menu, à escolha da matéria prima, à sua entrada na cozinha pelo cais, às operações de pré-preparação na cozinha fria, à mise en place2, oferecendo-nos também, por outro lado, uma relação hierárquica retroativa, que nos leva à terra, à compreensão do solo e dos processos de agropecuária. Por outro lado, nas cenas protagonizadas pela conversa, entre um ou mais elementos, através das quais se pode aceder aos meandros das duas instituições. Numa delas, a certa altura, o produtor de vacas que trabalha com os Troisgros afirma: “Respeitando o solo, as plantas e os animais serão saudáveis. É este o ciclo virtuoso”. Esta frase, pode ser apropriada em função dos momentos verbais, que vão retratando esta dinâmica familiar: respeitando a base – a comunicação – o nosso trabalho e as nossas relações serão saudáveis. A conversa, a aprendizagem partilhada, a compreensão mútua, vai pontuando o filme, em paralelo com os momentos da ordem do fazer, de forma eclética, desde a discussão de sabores, às encomendas vinícolas dos clientes, à aprendizagem sobre a fortificação do pasto das vacas, ou até ao briefing da equipa sobre a ética de trabalho anti-bullying. Com efeito, a ética é sublinhada subtilmente durante as quatro breves horas do filme, ao dar-se nota de uma liderança silenciosa, praticamente ímpar no universo da alta cozinha, para não mencionar a imparidade dessa harmonia no que toca a dinâmicas familiares.
Escutamos o filetar de um pregado, o destacar das costeletas de um borrego, entre sons frios das cubas e das facas de inox, que se alargam a toda a sonoridade da cozinha, que se vai apresentando, assim, partida a partida. Paralelamente, na sala, os empregados de mesa posicionam os talheres e os copos imaculados em cima do pano branco com a precisão de um jogador profissional de snooker. Mais tarde, encontramos vários tipos clientes, alguns connaisseurs, uns autênticos, outros vaidosos que se precipitam avidamente para receber todos os sabores e cheiros, rotulando-os rapidamente, sem deixar de parte o telemóvel, esse objeto que hoje, frequentemente, contamina a experiência gastronómica. Outros vão à descoberta, tímida por vezes, por outras, incorporada na celebração.
Menu Plaisirs evoca por diversas vezes um paralelismo com o cinema. A partir do método de “controlar a cozinha sem levantar a voz, só com o olhar” pode pensar-se na forma como Wiseman terá comunicado com o operador de câmara (James Bishop) e o engenheiro de som (Jean-Paul Mugel), e nesse sentido, pensar na relação entre quem se senta na cadeira do cinema de Wiseman, e em quem se senta à mesa da Maison Troisgros. Foquemo-nos no jogo de sombras da cozinha. Todos os momentos de degustação resultam de uma combinação entre um conhecimento extenso dos produtos e como reagem aos diferentes métodos de confeção. Numa das cenas que provocou sorrisos, o chef Michel precisa de relembrar um dos cozinheiros como drenar o sangue do cérebro dos cabritos antes de os cozer, rematando, que sempre que ele não souber alguma coisa deve recorrer a dois livros, a enciclopédia francesa Larousse e, ou, o Escoffier, a base de toda a cozinha, escrita por Auguste Escoffier. Ou seja, foi tudo escrito há muito tempo. Não existem invenções misteriosas, ou manobras ocultas, mas sim a combinação do conhecimento com um jogo de artifícios, sombras e luzes que, no restaurante, envolvem os pratos e o modo como chegam ao cliente. No cinema de Wiseman, exalta-se o sentido operativo da visão, a capacidade do espectador fazer ligações (independentemente da sua complexidade) e de construir, de certa forma, o seu filme. Essa capacidade obtém-se através do visionamento dos seus filmes, sem quaisquer concepções prévias de tempo, de sentido, e ironicamente, de hierarquia. Da mesma forma, no meio da alta cozinha, o paladar é uma ferramenta que se deve usar operativamente, tanto pelo “realizador” como pelo “espectador”. Qualquer pessoa que tenha trabalhado como cozinheiro sabe (ou devia saber) que as suas ferramentas principais são a colher e o palato, para que possa provar várias vezes tudo antes de ir para a mesa. Neste sentido, o gosto subjetivo é suprimido a favor da prova de sabor, instrumental. Também na mesa, quanto mais operativo for o palato do cliente, mais perto estará da experiência gastronómica.
Nas cozinhas de Les Troigros, não se fazem refeições. Come-se, em “silêncio” como num gesto de antropofagia, dos corpos e dos processos que em conjunto criaram os vários momentos. Paralelamente, no cinema de Wiseman, os momentos são construídos a partir do que o espetador tem vindo a “comer” ao longo do filme, da atenção que dedica a pormenores, bem como a traços gerais dos planos, ou até à componente verbal, procurando ligações entre imagem e palavra. Todos esses “sabores” se compreendem de forma diferente. Por isso se devem ver e rever, dividir, se for o caso, ou interromper, se se estiver de estômago cheio. O seu visionamento será sempre afetado pela cumulação. O mesmo acontece na boca, onde fica o sabor dos rins com maracujá, dos frutos vermelhos e caviar, da baunilha com uvas e folha de ouro, e de outros prazeres, saboreados com a visão.
Sebastião Casanova