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 “Não estou a pensar num tema que seja oportuno. Faço o cinema que quero fazer, no qual me revejo”

E se Lisboa estivesse prestes a ser acometida por um tremor de terra? E se esse tremor de terra pudesse ser previsto por um grupo de cientistas, presos numa encruzilhada ético-moral, sobre se devem (ou não) avisar a população? É esta a premissa de O Melhor dos Mundos, filme de Rita Nunes que teve a sua ante-estreia em maio deste ano, no IndieLisboa, e que chega aos cinemas esta quinta-feira (10).

O Cineblog esteve à conversa com a realizadora, que nos contou todo o processo de escrita e sucessivas reescritas do guião, acompanhado sempre por uma série de cientistas empenhados numa história o mais realista possível, o que tem dado frutos: apresentações do filme em conferências internacionais de sismologia estão em ordem. Rita Nunes contou-nos, ainda, sobre o tipo de cinema que quer fazer e como pretende sempre trazer a contemporaneidade às suas obras.

O Melhor dos Mundos,  de Rita Nunes © Direitos Reservados 

Entrevista realizada no decorrer da 21ª edição do festival Indielisboa

Encontrar a melhor história e a melhor maneira de a contar é uma das tuas grandes preocupações, algo que vejo muitas vezes em entrevistas tuas. Este filme em específico tem muito de ciência e pragmatismo. Como é que enfrentaste este desafio e como é que chegaste a esta temática?

Na verdade, cheguei a esta temática há muitos anos, não sei exatamente precisar. Há para aí uns 15 anos, na altura ainda estava a trabalhar com o Paulo Branco, desenvolvi um argumento que teve várias versões e foi várias vezes a concurso no ICA e que não foi aprovado sucessivamente. A dada altura, desse processo de escrita e reescrita, trouxe essa temática do pré-aviso de terramoto e da questão da iminência do terramoto em Lisboa, porque sempre foi um tema que me interessou, não do ponto de vista científico, como agora está refletido no filme, mas como tema em geral… Por ser de Lisboa, por esta possibilidade ser uma coisa que paira no ar. 

Gosto sempre de temas ligados à ciência. Sempre achei que pudesse ter interesse. Corta para 15 anos depois, em 2019, já depois do meu último filme (Linhas Tortas, 2019) ter sido exibido. Queria começar a desenvolver um novo projeto e resolvi pegar novamente nessa temática e convidei o João Cândido, que escreveu comigo este filme, para pensar numa história que pudesse incluir o tema. Ou seja, a base era sempre a iminência do terramoto.

Como é que íamos incluir isso na história? Logo se via… Começámos um argumento que não tinha como base, de todo, a ciência. Era uma coisa completamente aleatória. Claro que íamos justificar com base na ciência, mas não era desta forma. Concorremos ao ICA em 2020, já na altura da pandemia, e acelerámos o processo para entregar o projeto em Abril. Tivemos muito pouco tempo e foi uma coisa feita, pode dizer-se, em cima do joelho e sem maturidade nenhuma. 

Não ganhámos nesse ano e eu também sabia que o projeto não estava suficientemente bem desenvolvido. Nesse processo de escrita e reescrita (que teria que haver necessariamente), descubro a notícia de que havia um grupo de cientistas a fazer este projeto que se vê no filme, e eu pensei “bem, isto é incrível, isto é exatamente o tema do filme”. 

A possibilidade de haver um conjunto de cientistas que está a trabalhar sobre uma série de áreas científicas, desde a geofísica, sismologia, oceanografia, e que vai ter acesso em tempo real aos dados que estão a ser recolhidos no fundo do mar… Pensei, “se calhar podemos virar o projeto para esta pesquisa ligada aos cabos submarinos”…

E acabam por estar todas essas áreas representadas. Inspiraste-te em algumas dessas pessoas com quem te cruzaste?

Não especificamente nas pessoas, mas no conjunto de cientistas e no que eles estão a fazer e no que vai acontecer. O projeto científico que se vê no filme existe, vai acontecer em Portugal. É um projeto pioneiro. É tudo verdade. Essa parte é toda verdade. A parte dramatúrgica, ou seja, a Marta, é que não foi inspirada em nenhuma cientista.

O que acontece é que, de repente, estava a conhecer uma série de cientistas diferentes, homens e mulheres de várias áreas, e havia mais do que uma mulher dessa área a dizer que se reviam completamente naquele papel. Inclusive, uma das cientistas que conhecia, também sismóloga, começou a ler o guião, porque eu precisava de feedback em termos de rigor científico, e disse: “De repente pensava que era eu. Que a Marta era eu”. Mas não foi inspirado nesta cientista, nem em nenhuma especificamente. Há é o lado de eles se reverem nos papéis que foram criados. 

Antes do acompanhamento dos cientistas na reescrita do guião, tinhas acesso a essa linguagem? Sinto que quando se trata de filmes ligados à ciência, há sempre uma personagem que serve para “traduzir” as partes mais difíceis: “agora diz-me lá isto em português”. 

Aqui não houve essa tentativa de “estupidificação” do público e acho curioso que as pessoas que menos percebem do tema são ministros ou similares, naquelas reuniões burocráticas.  Ainda assim, há uma preocupação de haver explicação direta, sem o alarmismo de um apocalipse.

Nem era essa a intenção. Este não é um filme de catástrofe. Também não é propriamente ficção científica, apesar de ser ficção e sobre ciência, mas é um filme sobre a antecâmara de uma tragédia. É um ensaio sobre a natureza humana.

Existe uma peça do (Henrik) Ibsen, que é o Inimigo do Povo, que é precisamente sobre um alarme criado a partir de uma descoberta relacionada com a ciência. Nela, o que interessa discutir é a parte ética, a parte de confronto entre vários pólos em que há pessoas que defendem a ciência pura e a defesa dos valores humanísticos de defesa da população, e do outro lado, pessoas com outro tipo de interesses. No fundo, espelham um pouco o que acontece na sociedade.

Essas reuniões são interessantes — será que este filme poderá ser usado como uma base para um protocolo? 

O que aconteceu foi que todo o projeto foi acompanhado por este grupo que existe na realidade. E o consultor principal, o Luís Matias, foi de facto a pessoa que acompanhou o projeto, a escrita, entre toda a pesquisa até à última versão. Mesmo depois de filmarmos, a primeira versão de montagem também foi apresentada para ele verificar se estava tudo bem, se tudo estava correto. É quase uma simulação nesse aspeto e foi tudo validado por eles, sobretudo pelo Luís. 

Foram consultadas todas as entidades que estão no filme: a Protecção Civil, a Polícia, os bombeiros, o IPMA. Toda a gente foi consultada no sentido de se perceber que estávamos a fazer todos os procedimentos exatamente como eles poderiam acontecer.

Se acontecer, vai acontecer uma coisa semelhante… Todas as entidades colaboraram no sentido de tudo poder ser aquilo que realmente poderá acontecer, se acontecer este tipo de situação no futuro. Inclusive, a comunidade científica está muito interessada no projeto e no que ele poderá fazer pela ciência, por este tipo de ciência.

Já tenho uma série de convites para apresentar o filme, porque há várias áreas de ciência ligada a sismologia e a geofísica interessadas. Queremos mostrar o filme em eventos ligados à ciência: há um grande encontro de geofísicos no próximo ano, em Viena, e querem convidar-nos para apresentar o filme nesse encontro, que é o maior encontro mundial da área. 

Têm muito interesse sobre o que o filme está a retratar, porque nunca viram retratado este tema de uma forma rigorosa, não é? Normalmente, é sempre no ponto de vista mais catastrófico e de criação de um gimmick para se contar uma história, mas não do ponto de vista do rigor científico. 

O Melhor dos Mundos,  de Rita Nunes © Direitos Reservados 

Ao mesmo tempo, temos a parte mais dramática, dramatúrgica: a Marta, toda ela ciência e racionalidade, contamina muito a esfera do filme. Pensaste a Marta para a Sara Barros Leitão?  

Eu trabalho quase sempre sozinha nessa parte de pensar os atores, nunca me interessou muito trabalhar com diretores de casting, porque conheço muitos atores, vejo muito teatro, acompanho muito a cena portuguesa. 

Interessa-me muito o trabalho e a escolha dos atores e neste, no caso da Marta, que é a Sara, foi uma vontade muito grande trabalhar com ela e especificamente ela, também pelo trabalho que ela tem de criação e o que ela faz na vida dela. É também uma autora, criadora que se começou a produzir a ela própria, como eu neste caso, que resolvi fazer todo este processo sozinha a produzir o filme.

Interessou-me trabalhar com a Sara pelo que ela é, não só como atriz, mas como pessoa, e tive a sorte de ela aceitar e tive a sorte de estar disponível. A Sara foi mesmo pensada desde o início para o projeto e consegui que fosse ela a fazer o projeto.

E os poucos momentos de vulnerabilidade que ela tem são muito interessantes. Pegando na questão da vulnerabilidade, há uma cena que gostei no filme que corta imenso o escopo da tensão, quando o diretor quer fumar um cigarro. É quase um alívio, estava escrito? 

Sim, estava tudo no guião. No tipo de cinema que eu quero fazer, num filme com uma carga de tensão onde pode acontecer uma catástrofe que pode custar vidas, a vida continua a ter momentos reais, não é? De absurdo…

As coisas que acontecem mesmo assim,  e que eu queria que elas estivessem no filme. Como a irmã, por exemplo, que não consegue sair de casa porque não sabe o que vestir. São tudo coisas que podem acontecer, e que acontecem em algum momento. 

E se o terramoto acontecer, o teu filme torna-se numa coisa completamente diferente? 

Não me dava jeito nenhum que um terramoto acontecesse antes de o filme estrear. Era um spoiler

Este filme foge um bocadinho daquela estética mais do cinema de autor, mais comum nos festivais. Afastas-te propositadamente disso…?

Eu tenho a minha estética, tenho a minha linguagem. Não é uma coisa intencional. É o tipo de cinema que eu quero fazer, no qual me revejo. Gosto muito de cinema de autor e cinema experimental enquanto espetadora. Mas enquanto realizadora, identifico-me com o tipo de linguagem que estou a desenvolver. 

Desde que faço filmes, não estou a pensar num tema que seja oportuno. Acho que há, de facto, muita exploração de temas que são do momento. Como os temas agora ligados ao colonialismo. E eu, claro, sou muito sensível a esses temas, mas quero fazer o cinema que me interessa fazer, independentemente de ser mais oportuno em termos sociais ou políticos, ou porque podem ter mais hipóteses em festivais.

Quero comunicar com todo o tipo de pessoas e ter um tipo de cinema acessível a um público transversal.

E tens filmes altamente atuais. O Linhas Tortas (2019) sobre as relações na era das redes sociais, a série documental Efeito Estufa (2022) sobre o sudeste alentejano, e mesmo em termos mais formais, o “Menos Nove” (1997), muito ligado esteticamente ao que se fazia nos anos 1990. Os teus trabalhos acabam por estar sempre em linha com a atualidade.

Eu, pelo menos, tenho a ambição de fazer filmes que sejam universais e intemporais. Isso torna um filme clássico, não é? Os filmes têm que estar marcados pela época em que estão inseridos e eu não tenho nenhum medo de incluir, por exemplo, a tecnologia. 

Não tenho nenhum medo se este filme daqui uns anos — se acontecer um terramoto ou se a tecnologia evoluir —  passar a ser um filme que fica marcado por ser filmado em 2023, passando-se em 2027.

Essa questão de ter medo dos filmes terem uma linguagem que é contemporânea no seu tempo não é uma coisa que me preocupa. 

E a escolha desse ano? Pensei que pudesse ter a ver com o facto de, daqui a 3 anos, as coisas não parecerão tão obsoletas nesse tempo. De 2017 a 2024, por exemplo, talvez muito mais coisas mudaram em termos tecnológicos.

Em 2020, o projeto (estava previsto para ser) concretizado em 2024, 2025. Ou seja, esta substituição dos cabos e da instalação dos sensores dos cabos, tudo isto era suposto acontecer em 2025. 

Agora está atrasado um ano porque a vida acontece, mas acontecendo que os cabos estejam instalados em 2025, 2027 é um futuro suficientemente próximo para não ter de estar a pôr automóveis e telemóveis, tudo futurista mas que já existe há um certo tempo. 

Estes dois anos, 2025 a 2027, seriam anos em que o grupo já estaria a funcionar. Não queria que se passasse em 2030, 2040. Passando-se nesta altura, tenho um carro com “x”  anos e as coisas estão todas iguais. Mesmo a roupa é toda igual à de há dois ou três anos.

Não tenho que estar a fazer um filme com uma projeção visual futurista. Foi só o tempo indispensável para este projeto já existir. Se eu fizesse o filme passado em 2023, quando ele foi filmado, ainda não existiria projeto. O tempo é indispensável para ele ser posto em prática.

E para o futuro, vais continuar com a odisseia dos tremores de terra, vais continuar com a ciência na ficção? 

Não, neste momento tenho dois projetos em desenvolvimento, estou a candidatar-me a financiamentos. 

Um é uma ficção baseada numa história que aconteceu no Alentejo. Estou entre Lisboa e o Alentejo e interessa-me muito continuar a retratar também essa zona, onde também passo boa parte do tempo. Vai ser o contrário destes dois últimos filmes que são completamente urbanos, contemporâneos, não-rurais. Neste caso, é com uma coisa completamente rural, passada mesmo no Alentejo rural.

Depois, tenho um documentário biográfico. Não quero falar muito em nenhuma das duas histórias, nem sobre quem é o biografado, mas são projetos completamente diferentes destes. 

Não têm nada a ver com ciência.

Kenia Nunes

[Foto em destaque: O Melhor dos Mundos,  de Rita Nunes © Direitos Reservados]

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