Um dos maiores poderes do cinema é contar a mesma história a partir de diferentes pontos de vista. No seu novo filme, Culpado-Inocente-Monstro (Monster, 2023), o realizador japonês Hirokazu Kore-eda utiliza esse recurso, que ao se desdobrar conforme o filme avança, revela-nos um mundo mais complexo do que jamais pensaríamos. Vencedor do melhor roteiro no Festival de Cannes em 2023 e em cartaz nos cinemas portugueses a partir de amanhã, 7 de março, Culpado-Inocente-Monstro subverte notavelmente o que aparenta ser.
Escrito por Yûji Sakamoto, Culpado-Inocente-Monstro segue a visão de três personagens: primeiro, acompanhamos Saori Mugino (Sakura Ando), uma mãe que começa a perceber comportamentos estranhos no filho, Minato Mugino (Soya Kurokawa). Ele fala que tem cérebro de porco e dá a entender que sofre abusos do seu professor, Michitoshi Hori (Eita Nagayama). Saori procura os professores e a diretora da escola, Makiko Fushimi (Yūko Tanaka), para perceber o que se passa, além de tentar conversar com Yori (Hinata Hiiragi), colega de classe do filho. A segunda parte do filme segue Hori e o seu cotidiano como professor novato na escola de Minato, mostrando-nos os mesmos acontecimentos, mas dessa vez, compreendendo o desenrolar da trama através da sua perspetiva. Por fim, temos a visão de Minato, há aqui um aprofundamento do seu dia a dia na escola e, sobretudo, da sua amizade com Yori.
As três sequências tem início no momento em que há um incêndio num prédio, que os personagens principais testemunham. Embora não vejamos de forma tão clara o fogo que consome o local, ele é uma espécie de explosão: a catapulta de todos os acontecimentos posteriores. O que se segue é quase um ‘iceberg’, do qual começamos por ver somente a superfície. Não há mistério a ser resolvido enquanto assistimos à sequência de Saori, acreditamos fielmente que Hori é a perversidade em forma de pessoa, o culpado pelo estranho comportamento de Minato. Contudo, quando mergulhamos mais profundamente, começamos a enxergar o que está submerso. Hori não passa de um professor que procura, a todo momento, resolver toda e qualquer adversidade que possa surgir na escola. Compreendemos a sua inocência, mas retomamos para a pergunta que Minato faz num sussurro, “quem é o monstro?”. O questionamento, ecoando cada vez mais nas nossas mentes é respondido quando entramos nas profundezas do oceano, na relação entre Minato e Yori, que vai além de uma simples amizade.
Kore-eda debruça-se novamente sobre aquilo que explora como ninguém: as relações pessoais. Devido à escolha do título e à atmosfera que cria nos primeiros minutos, temos a impressão que o Culpado-Inocente-Monstro beberá nas águas do terror. Entretanto, o filme toma o rumo contrário e alinha-se, no que condiz a temáticas, com suas obras anteriores. O objetivo de Kore-eda não é fazer uma obra de gênero, mas sim, colocar mais uma vez no ecrã a realidade, a subjetividade e as conexões. Simpatizamos com a preocupação de Saori – numa atuação primorosa, nos sentimos impotentes por não podermos ajudá-la – ao mesmo tempo que desejamos consolar a diretora da escola ao descobrirmos que ela perdeu o seu neto. Kore-eda trata novamente de estruturas familiares que fogem do convencional – para além do neto da diretora, também o pai de Minato morreu há pouco tempo.
Ao longo do filme, o questionamento sobre a natureza do monstro fica conosco até entendermos quem, de fato, ele é. Kore-eda traz em Culpado-Inocente-Monstro um viés LGBTQIA+ ao apresentar a amizade de Minato por Yori. O verdadeiro monstro não é um ser em si, mas as intolerâncias que assistimos hoje em dia, intensificadas na cultura conservadora que ainda persiste na sociedade japonesa. No final, depois de uma chuva torrencial, que põe em risco a vida de Minato e Yori, ficamos com um rastro de interrogações sobre o que acontece com eles – a floresta verdejante é real ou estamos, com os personagens, em outra dimensão?
Kore-eda firma-se ainda mais nos dramas familiares e pessoais – como se, mesmo depois de Nobody Knows (2004) e Shoplifters (2017), isso ainda fosse necessário. Mas que bom que o fez. Culpado-Inocente-Monstro é melancólico e toca-nos de uma forma que, inicialmente, pensamos não ser capaz. A soma das imagens com a trilha sonora, última parceria com o compositor Ryuichi Sakamoto, falecido no ano passado, criou uma atmosfera que tange o onírico, um lugar onde as normas da sociedade não são capazes de alcançar. O ônibus abandonado no meio da floresta é transformado na fortaleza dos garotos, um lugar onde os problemas se dissolvem feito balas de limão. Ao final, Minato e Yori, finalmente, voltam para casa.
*O presente texto encontra-se escrito em português do Brasil.
Lílian Lopes
[Foto em destaque: Culpado-Inocente-Monstro (2023), de Hirokazu Kore-eda © Direitos Reservados]