O Que Vemos Quando Olhamos Para O Céu? é o que nos questiona a segunda longa-metragem do realizador Alexandre Koberidze. É o tom interpelador que domina este drama romântico, que faz da autorreflexão sua missão. “O que vemos?”, “O que é que cada um de nós vê?” e “Será que vemos todos o mesmo?” – a subjetividade está presente na interrogação e nas interrogações que dela advêm. E a mensagem do filme parece perpetuar essa subjetividade, negando o mundo à nossa volta como algo objetivo e concreto. Pelo contrário, o realizador georgiano parece querer provar que este mundo é diferente aos olhos de cada um.
Parece ainda haver duas intenções na pergunta que dá título ao próprio filme: a primeira, como notado anteriormente, é a necessidade de percepção de que cada um de nós apresenta um olhar diferente sobre as coisas, e a segunda é uma sensação de dever, de pausa e contemplação por este mundo em redor. Koberidze treina o nosso olhar através da câmara que capta este mundo em redor na maior das suas simplicidades.
O enredo do filme conta a história de dois jovens: Giorgi e Lisa. As duas personagens cruzam-se duas vezes no mesmo dia, e entendendo esse cruzamento como obra do destino, decidem marcar um encontro para o dia seguinte, sem, no entanto, trocar nomes ou números de telefone (num registo que lembra quase um amor à moda antiga: o amor das cartas). Contudo, esse destino revela-se traiçoeiro e, tanto num como no outro, há uma troca de corpo durante a noite, não permitindo o reconhecimento no dia do encontro. Este realismo mágico da narrativa é acompanhado pelo dia-a-dia da cidade, na sua forma mais natural e simples. Enquanto estas duas personagens aprendem a viver com os seus novos corpos, a cidade continua a sua jornada diária.
Koberidze escolhe entregar-nos um filme onde os planos de contemplação parecem ser de ordem obrigatória e consegue, pela oposição, chamar a atenção do espectador para o facto de que as pessoas, no geral, vivem uma vida de conformidade com tendência a ignorar as coisas mais pequenas, que se revelam, contudo, muitas vezes as mais belas. Quando algo estranho à realidade acontece, como, por exemplo, a mutação que Lisa e Georgi sofrem (não perdendo só o corpo com o qual se identificam, mas também as capacidades agregadas a ele), esse estado de conformidade parece romper-se e dá-se uma sensação de “alerta” para o desconhecido, mas, principalmente, para o conhecido. Os dados que temos adquiridos à partida são aqueles que se revelam mais perigosos porque são também eles que contamos como sendo os mais seguros. É desta forma que a câmara começa a ganhar uma maior percepção e curiosidade pelo que está à volta daquilo que parecia ser o seu “assunto” principal. Ao usar o mecanismo da troca de corpos, tudo, a partir daí, parece ser possível e isso permite a reflexão atenta sobre as coisas. O filme utiliza este mecanismo de forma brilhante.
A narrativa não fica estagnada naqueles dois estranhos que mudam de corpo, ela vai muito para além disso e ambiciona captar tudo aquilo que os cerca. Desde as crianças que entram e saem da escola, dos adolescentes que conversam, dos cães que habitam as ruas, do futebol (nas suas duas formas: a de jogo físico e a de jogo transmitido para multidões) à equipa de filmagem que procura casais apaixonados. E o filme é sobre isto tudo assim como é sobre Lisa e Georgi. É um filme sobre a Geórgia, sobre a cidade de Kutaisi, sobre as pessoas que nela habitam, sobre os animais que por ela vagueiam, sobre os objetos que a cobrem. E todos estes planos que, normalmente, serviriam como planos de corte, planos que intercalam as cenas importantes de um filme, são dotados de uma significância extrema e são eles que formam o filme.
A verdade é que, ao nível dos aspetos técnicos, o filme parece destacar-se do cinema que tem vindo a ser feito na contemporaneidade, aproximando-se muito mais do cinema mudo ou da contemplação das sinfonias da cidade. Koberidze opta pelo uso da narração, dando a sua própria voz ao filme, e acaba por conseguir dessa forma mostrar-nos mais planos da cidade, onde o diálogo não toma lugar, e contar-nos, por outro lado, histórias paralelas à história “principal” do filme. A própria forma como decide filmar as duas personagens principais num dos momentos cruciais da narrativa – o momento do cruzamento – cortadas dos joelhos para baixo, apenas demonstra o quão ele desejava que o espectador não se deixasse apenas levar por uma única história, mas que observasse o filme como um todo, onde tudo apresenta a mesma significância. A forma como este filme funciona enquanto cinema a falar sobre cinema, usando os mecanismos do cinema, principalmente nas cenas da equipa de filmagens, revela-se muito inteligente no desfecho das duas personagens que seguimos durante o filme, Lisa e Georgi. Os corpos que ambos reconheciam são revelados no filme dentro do filme, fazendo da arte da ilusão, arte da resolução e da revelação do “real”.
A câmara de Faraz Fesharaki, diretor de fotografia, leva o espectador a embarcar nesta viagem que funciona quase como uma sinfonia da cidade, uma carta de amor a Kutaisi e à Geórgia, acompanhada pela bela banda sonora do compositor, Giorgi Koberidze, irmão do realizador. O Que Vemos Quando Olhamos Para O Céu é dominado pela simplicidade e beleza das pequenas coisas. A forma simples e bela como parece filmar os assuntos que trata insurge-se contra a violência e agressividade que parece dominar o mundo, nos dias de hoje. O filme, agora nas salas de cinema, teve a sua estreia no Berlinale, em 2021, onde arrecadou o Prémio da Crítica. Em Portugal, estreou na 18ª edição do Indielisboa.
[Foto em destaque: O Que Vemos Quando Olhamos Para O Céu? (Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt?), de Aleksandre Koberidze – © Deutsche Film- und Fernsehakademie Berlin (DFFB)]