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O Zumbido Atordoador da Discoteca – Pacifiction de Albert Serra

Seria possível reduzir Pacifiction, (2023),  de Albert Serra, ao seu discurso político, como muitos já o fizeram (imperialismo, colonialismo, apropriação cultural…), mas isso seria ignorar o que o realizador espreme desses temas: um dos filmes mais assustadores e opressivamente sinistros do ano passado. Claro que os temas políticos estão presentes, mas em vez de serem apresentados numa perfeita trama narrativa, estes surgem como um bloco monolítico incessante de zumbido atormentante. O impulso anti-narrativo do filme funciona porque barra o espetador da entrada no mundo-além dos segredos, ou seja, ele sente que uma verdade coerente existe, mas ao tentar seguir os fios da história que são apresentados, inevitavelmente acaba no chão emaranhado no novelo. Serra sabe isto e assume o papel de dominante neste jogo shibari (não estás no chão enrolado em lã como um gato, foste atado minuciosamente e com precisão, com um olho perspicaz ao valor estético da ação).

O protagonista, De Roller, assume-se como estando num nível de perceção elevada em relação às outras personagens. Ao longo do filme, ele é arrastado pela lama proverbial até perder qualquer confiança no seu intelecto e visão. Tudo o que lhe resta é lamber a chuva que Deus lhe oferece, livre, no meio do campo de futebol (onde mesmo assim, não está livre de vigilância). Não há um declínio constante, mas sim um caminho aos solavancos (como a incrível cena das ondas). 

Pacifiction, Albert Serra © Rosa Filmes

Serra já não está diretamente a inspirar-se em Sade, como no seu filme anterior, porém Sade brota nos seus recantos. Longe do sensorial, o foco sadeano deste filme encontra-se no  não-pornográfico, tão ignorado na sua obra, o oratório. Nos livros de Sade, no meio da pornografia extrema, é comum as personagens entrarem em diálogos (estruturados como trocas de massivos monólogos) acerca das suas crenças e filosofias pessoais. O filme é, estruturalmente, constituído por diálogos completamente incompreensíveis. Personagens a trocarem de posição e estratégia num campo de xadrez decadimensional a que todos têm acesso menos nós (e o De Roller, mesmo que não queira admitir). De Roller é a personagem que mais se assume no perfil de diálogo sadeano, contudo acima de querer estabelecer a sua filosofia, parece infinitamente estar a tentar convencer os seus oponentes (e acima deles, a si mesmo).

O filme já foi criticado por uma estética visual vazia, focada numa harmonia auto-satisfeita de cores e texturas. Isto não poderia estar mais longe da verdade. Pacifiction tem uso recorrente de néon, principalmente vermelho e branco irradiante, porém, ao contrário do seu uso fetichista em revivalismos vazios dos anos 80, neste caso, o afeto provocado não poderia ser mais rançoso. Por um lado ligado à radioatividade em jogo constante do filme, por outro lado, focado num sentimento de inversão do signo, onde o apelativo das discotecas se torna completamente grotesco. Uma discoteca só tem valor proporcional ao calor dos corpos que a enchem. A tese do filme parece ser que a geopolítica é uma discoteca vazia no inferno. O que acontece quando a sala apenas é preenchida pelas luzes do néon? 

Pacifiction, inegavelmente, tem cenas de intensidade marcantes, no entanto, o seu carisma está nesta sedução do néon, uma sedução anestesiante e soporífera que conduz a sua vítima a um mundo de horrores. Simone Weil, em A Gravidade e a Graça afirma que “O mal imaginário é romântico, variado, o mal real é morno, monótono, desértico, enfadonho.” O cineasta parece aventurar-se em trazer a monotonia enfadonha do Mal real para o mundo da ficção, algo que só o torna mais aterrador. 

Pacifiction, Albert Serra © Rosa Filmes

A experiência de ver este filme é a de olhar para a monotonia no seu mais maligno. Burocracia infindável apenas preocupada consigo própria, responsável pela morte de milhões e vestida para matar no seu vestido VERMELHO estonteante e com a pele BRANCA, que cega com o seu brilho. Quando em Twin Peaks: Fire Walk With Me Laura Palmer olha para a ventoinha no teto de sua casa, seduzida pelo seu zumbido, apenas o faz sob a influência dum mal cósmico. Este filme emula a experiência de olhar na cara do mal sedutor da ventoinha da família Palmer enquanto mentalmente estável. É possível sentir a loucura infiltrar-se.

Duas cenas a destacar que sintetizam tudo o que foi aqui apresentado. A primeira, o tableau nauseabundo de uma mulher a ser estrangulada “meigamente” enquanto tenta fugir sem grande convicção. Não se ouvem as vozes desta parelha, apenas a música eletrónica ambiente a ser curada por uma DJ nativa do Taiti em topless, com os seus seios proeminentes na cena (imediatamente após uma conversa entre outras duas personagens acerca de uma mulher, que devido aos testes nucleares no Taiti, teve cancro da mama 3 vezes ao longo da sua vida…). A segunda, o monólogo de De Roller, no qual estabelece como missão “ligar as luzes da discoteca e revelar a violência”. Este monólogo é contrastado com a grande peça armilar da discoteca, única cena em que De Roller não tem agência (sendo também a única em que não está a usar o seu fato branco, de forma a não ser destacado pela luz negra). Nesta discoteca o Almirante responsável pelos testes nucleares dança de forma assustadoramente patética em frente de um mural com um panorama de um vulcão em erupção, enquanto acaricia homens musculados (corpos esculturais que se irão perder para deformações no iminente desastre).

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Pacifiction, Albert Serra © Rosa Filmes]

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