Jacques Audiard estreou-se na realização, aos 42 anos, com O Declínio dos Homens (1994), que lhe valeu o César de Melhor Primeira Obra. Seguiram-se filmes que lhe conquistaram numerosos prémios e uma admirável reputação. Em 2015, ganhou a Palma de Ouro em Cannes com Deephan. Paris, 13 é o seu mais recente filme e teve a sua estreia mundial no Festival de Cannes, em 2021. Por agora, podemos encontrá-lo na sala de cinema Nimas, em Lisboa.
Émilie precisa de dividir a renda da sua casa e é assim que conhece Camille, um professor que quer focar-se no seu doutoramento, com quem começa uma relação casual. Nora, uma rapariga nos seus trinta anos, decide voltar a estudar. Após ser confundida com Amber, uma camgirl, desiste do curso por ser alvo de bullying constante e desenvolve uma forte ligação com ela. Torna-se colega do novo trabalho de Camille no ramo imobiliário e inicia uma relação com este. Émilie, Camille, Nora – Amigos e amantes, deambulantes, cruzam-se nas suas vidas e nos seus caminhos. Uma história sobre o amor e as relações na modernidade.
Audiard baseia-se nas novelas gráficas do cartoonista da New Yorker, Adrian Tomine (Killing and Dying, Amber Sweet e Hawaiian Getaway) e o argumento do filme é escrito em conjunto com Léa Mysius e Céline Sciamma, a promissora realizadora de O Retrato de Uma Rapariga em Chamas (2019). Filmado a preto e branco, com cinematografia de Paul Guilhaume, o espectador navega por estas pequenas histórias e pelos seus cruzamentos. O foco é a geração y ou millenial, os jovens adultos da contemporaneidade, e a forma como estes interagem e constroem a sua própria identidade. Esta construção da identidade é inerente à forma como se relacionam uns com os outros e com a sociedade em geral. São estas relações que lhes permitem descodificar as suas emoções e a sua sexualidade e avançar.
O filme é carregado de conteúdo sexual, e, apesar de em muitos outros filmes estas cenas nos aparecerem como acessórias à história, aqui funcionam como fio condutor da narrativa. É o contacto físico que narra a vida destas personagens. O que é mais curioso é que temos esta geração, que é historicamente ligada a um universo tecnológico emergente, é a geração do digital: das mensagens, das redes sociais, das dating apps, dos tweets e, no entanto, o realizador decide afastar o foco dessas formas de comunicação e contacto. Elas estão lá, mas não importam muito, é o contacto físico que ocupa o lugar de destaque. E a riqueza do filme também está em perceber como este contacto físico nos dias de hoje contrasta com a forma como as pessoas se relacionavam fisicamente no passado.
Quando Camille nos diz “I channel professional frustration into intense sexual activity” e Émilie responde mais à frente “sex first, see later”, entendemos bem de que forma esta sexualidade e este contacto são essenciais na forma como estes jovens adultos resolvem os seus problemas ou veem o mundo. O uso do preto e branco acaba por ser um veículo para a perceção desta mudança, remetendo-nos para algo antigo como os filmes sem cor. Dessa forma, colocando em contraste o contacto muito mais imediato e casual destes jovens adultos e uma certa moderação e reserva do contacto físico que tinham as gerações anteriores.
A verdade é que isto não faz com que o filme seja desprovido do lado sentimental. Pelo contrário, são as emoções e as dificuldades destas personagens que estão em evidência. A diferença nos dias de hoje é que a sexualidade apresenta um papel muito mais determinante neste aspeto e nesta descoberta. A descoberta sexual é que impulsiona a descoberta interior, no sentido em que se parte da intimidade para explorar outros aspetos relacionados com os sentimentos/emoções, o que desencadeia de certa forma uma procura interior e uma consciencialização da individualidade.
Se olharmos para a personagem de Nora percebemos os seus complexos com a sexualidade, que parecem advir de uma relação abusiva do passado, e acompanhamos esta desconstrução em prol de uma desconstrução também interior. A sua relação com Amber é o culminar disso, como se a personagem tivesse conseguido ultrapassar os problemas com os quais iniciou o seu caminho neste filme. O curioso é que este não parece ser um filme “de final feliz”, apesar do seu final ser feliz, ou seja, as personagens entram nele com os seus problemas e parecem conseguir resolvê-los no final e encontrar o seu caminho, contudo nunca temos a sensação de que essa conclusão é finita, sendo antes apenas uma etapa da descoberta.
Paris, 13 abre as portas para esta ideia de que as coisas na vida não são finitas, não funcionam como listas de tarefas que uma pessoa acaba e conclui. A vida é dinâmica e estamos a caminhar para gerações cada vez mais conscientes disto. Jovens que frequentam o psicólogo, que têm relações casuais, que não se veem a casar ou a ter filhos. São as novas gerações que estão a contribuir para esta desconstrução da vida “como era suposto ser vivida”, e que, muitas vezes, não faz sentido nem encaixa nos princípios que muitos destes jovens têm atualmente. A descoberta e abertura sexual são uma das grandes principais causas desta mudança de pensamento e paradigma.
Não podemos ainda esquecer a questão do espaço, da cidade, que está presente logo no título do filme: Paris, 13 ou Les Olympiades (título original), que é uma zona residencial em Paris. O pano de fundo do filme é Paris mas temos a sensação que poderia ser uma outra cidade qualquer, principalmente por este recurso ao preto e branco, que permite a metamorfose da mesma. A ideia é filmar uma geração de pessoas que poderia estar em Paris, mas que poderia estar noutro lugar qualquer do mundo sem que a história se deixasse influenciar. O que acaba por ser ligeiramente confuso pelo facto do realizador decidir chamar a atenção para esta localidade no próprio título do filme, quando a ideia parece ser precisamente contrária.
Paris, 13 é um filme subtil, que para muitos pode passar despercebido, mas que tem uma beleza própria e singular. A sua intenção de nos trazer a juventude e as mudanças e lutas que tem vindo a travar, interiormente e entre si, é genuína e importante. Contudo, o filme não deixa de fazer um piscar de olhos ao passado e ao romantismo (ou nostalgia) que o acompanha, principalmente na cena final, onde vemos Émilie a atender um telefone antigo e Camille a declarar-se a ela. O amor é um sentimento em mudança mas é também moldado por estas tradições que as gerações mais antigas transmitem às mais novas, e isso é o que ele tem, talvez, de mais belo.
Inês Moreira
[Foto em destaque: Paris, 13, de Jacques Audiard – © Page 114, France 2 Cinéma, Canal+, Ciné+, France Télévisions, Cofinova 17]