TUDO QUE FICA NA SUPERFÍCIE MORRE (2022)
um filme de Carina Pierro Corso
Aprender a nadar e afogar-se. Ficar à tona, neste caso, significa justamente não morrer (ou, pelo menos, não correr tanto esse risco). A superfície como plano sobre o qual caminham os vivos e sob o qual se guardam os mortos. Daí a paradoxalidade do título deste pequeno filme de animação de Carina Pierro Corso, que se debruça sobre a dualidade das coisas, explorando a correlação que existe entre opostos – enfim, um filme que nos fala de como uma coisa pressupõe e precisa do seu contrário (e vice-versa): a vida pressupõe a morte, o dentro pressupõe o fora, a ordem pressupõe o caos, etc.
Neste filme, esta dualidade recai sobre os gestos mais banais da vida quotidiana, desde o lavar a louça ao fazer a cama, mas também sobre desafios e experiências das vidas de cada um, como aprender a nadar ou a sensação de dor. Talvez seja esta a chave para compreender a aparente paradoxalidade do título. É na repetição de determinados gestos – como coçar uma ferida, uma crosta –, mas também no que há de repetitivo neste “ciclo de vida e morte” inerente a tudo o que existe, que a superfície se torna o campo no qual tudo se dissolve, no qual tudo acaba, inevitavelmente, por morrer.
João Ayton
NINO (2021)
um filme de Alice Voisin
Nino é um filme que parece colocar a vida a falar sobre ela mesma, assim como fazem Richard Linklater ou Mia Hansen-Løve nos seus romances, sem grandes dispositivos ou distrações. Ainda assim, faz parte de um tipo de cinema que não deixa de prender e surpreender o espectador.
Três amigas (Andréa, Camille e Inès) alugam um apartamento em Marselha. O dono, Nino, não está presente, no entanto é ele que preenche as conversas e as fantasias destas mulheres, que de certa forma se sentem próximas dele através dos seus objetos espalhados pela casa. É ainda ele que dá nome ao filme. Andrèa é a personagem que estabelece maior contacto com esta personagem Nino, que acaba por não ser nada mais do que um conceito. A solidão de Andrèa, que carrega livros para todo lado como se estes fossem os seus melhores amigos, é colmatada perpetuando esta fantasia de estar próxima de alguém, ainda que esse alguém nunca chegue realmente a ter vida.
Há em Nino uma reflexão sobre o eu e sobre o saber estar com esse eu. As constantes trocas de ideias que as amigas têm sobre a vida são também sinónimo disso: de uma necessidade de autoconhecimento e de definição. O poema final é dirigido a Nino mas é também dirigido a elas, numa tentativa de se aproximarem delas mesmas e de tornarem as fantasias, dos livros que lêem, dos filmes que vêem e das músicas que ouvem, na sua própria realidade.
Inês Moreira
A NARRATION OF A FUNERAL (2022)
um filme de Amir Sedghinir
A história de um funeral não contém, aparentemente, nada de novo. No entanto, narrar um enterro implica dois gestos inversos: por um lado, trata-se de mostrar algo que já não existe, de dar presença a uma ausência (o morto); por outro, e inversamente, trata-se de dar presença àquilo que existe (ou fica) sob a forma de ausência (a dor, por exemplo). Mas eis que este ritual, tão antigo quanto a própria humanidade, é abalado por um recente acontecimento histórico que interrompe e bloqueia o seu funcionamento normal: a pandemia de Covid-19.
Por mais diversos que sejam os rituais em honra dos mortos, o funeral funciona como ritual de passagem. Aí somos confrontados com a nossa própria finitude, central à condição humana. Ora, Narration of a Funeral, de Amir Sedghinir, não se limita apenas a contar a história de alguém que morreu e da tristeza que recai sobre os seus familiares, mas antes retrata os seus infelizes contornos. O morto não é mais alguém a quem nos dirigimos para dele nos despedirmos, mas um corpo que nos é vedado, ao qual não temos acesso devido às restrições da pandemia. No meio de máscaras e fatos médicos que não deixam de lembrar aqueles usados durante a Peste Negra, o morto torna-se inalcançável, um corpo reduzido à sua condição de defunto e, por isso, equivalente a qualquer outro.
João Ayton
SARIKAT (2021)
um filme de Ezra Cecio
Sarikat, de Ezra Cecio, não é apenas um documentário sobre um velho casal. É, acima de tudo, um filme sobre esses pequenos gestos, as conversas, os hábitos e costumes que preenchem a vida de cada um. Tal como no século XIX se dá uma grande viragem na representação artística, abandonando os grandes acontecimentos e personagens, que favorece não apenas a vida das classes mais baixas, mas principalmente aquilo de que ela é feita, poder-se-ia dizer que Ezra Cecio segue, hoje, nessa mesma direcção. Não se trata, contudo, de uma simples inversão representativa, mas antes de uma transformação formal.
À parte as consequências políticas do movimento realista de outrora, o interessante aqui reside nessa mudança de olhar, no foco da vida quotidiana e no que ela tem de mais ordinário. Ao invés de enaltecer a vida do casal, Sarikat mostra-nos não só o que ela tem de mais simples, mas também o que nela há de aborrecido: os dias monótonos de um casal e a alegria que ele aí encontra, ora relembrando o dia em que se conheceram ou o dia de casamento, ora tomando refeições em conjunto ou falando do que é o amor.
João Ayton
ANDRÔMEDA (2022)
um filme de Lucas Gesser
Andrômeda de Lucas Gesser é um filme que abraça a tristeza daqueles que perderam alguém. A palavra Andrômeda ocupa dois lugares importantes no filme, acabando por se fundir num só: é o nome de uma mesa de jogos na qual Júlia e Mariana costumavam jogar e é ainda o nome da galáxia mais próxima da Via Láctea. Andrômeda é o fantasma de Mariana e é ao mesmo tempo aquilo que permite preservar as memórias que Júlia tem dela.
A solidão e a tristeza de Júlia levam-nos de regresso ao passado, atravessando a cidade ao som de uma música que relembra a ficção científica e os videojogos, à procura destas memórias de Mariana que apenas conhecemos através do nome. A noite domina o presente e o dia domina o passado, como mecanismo utilizado para separar os dois, noite que é mais uma vez ligada a uma tristeza que está inerente no presente e dia ligado a uma felicidade e claridade que pertence ao passado.
Todavia, no final do filme, com a ajuda da amiga de Júlia, percebemos que esta Andômeda/galáxia tem ainda um outro significado. O seu brilho, o que restou dela depois dela morrer, é uma metáfora para a forma como Júlia deve encarar as suas memórias, não de uma forma triste mas como um brilho que lhe resta e que ela pode conservar para o resto da vida. Os fantasmas do passado tomam a forma de estrelas.
Inês Moreira
Nota: A folha de sala inclui textos de autores que não pertencem ao CINEblog IFILNOVA.