Produzida sob o mote “No Happy Ever After”, a 6ª edição do BEAST IFF – festival dedicado ao cinema da Europa do Leste – é criadora de um diálogo entre o cinema e a situação política destes países. “Não há finais felizes?” é a pergunta que paira nas ruas do Porto durante os dias do festival. Há uma ideia romântica da dor como criadora de uma imensa potência artística que, até certa medida, o BEAST parece confirmar. Isto porque a programação dedicada à emergente cultura progressiva e às inúmeras narrativas de resistência deixa pouco espaço para contos de fadas e utopias. Os finais não são necessariamente felizes e não precisam de o ser. Afinal, há ainda um longo caminho a percorrer e é relevante explorar fórmulas alternativas aos finais felizes.
Num festival onde a maior parte dos filmes exibidos são bastante recentes, The Murder of Mr. Devil (1970) rompe com este padrão, transportando-nos para os anos de ouro da produção cinematográfica checoslovaca. Este é o único filme dirigido individualmente por Ester Krumbachová, grande responsável pela estética da nova onda de cinema checo. Inserido neste movimento de vanguarda, o filme opera um jogo entre o real e o surreal; uma desconstrução sarcástica do comportamento masculino e dos cânones da comédia romântica.
Imprevisível e erótico, The Murder of Mr. Devil desenvolve-se exclusivamente no interior do apartamento de uma mulher solitária que convida o Diabo (Bohouš Čert) para sua casa. À semelhança de Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman, também este filme nos convida para a esfera privada da mulher. Aqui, atividades ordinárias recebem uma relevância que é inusitada no cinema. Entre móveis e talheres antigos, plantas tropicais, tons alaranjados e acinzentados, assistimos a requintados banquetes e às inúteis tentativas desta mulher conquistar um homem guloso e indelicado.
The Murder of Mr. Devil, Ester Krumbachová © Direitos reservados
Jeanne Dielman, Chantal Akerman © Direitos reservados
No BEAST, este filme surge integrado num programa chamado “The Raisin Prophecy”, constituído por The Murder of Mr. Devil e In Search of Ester, um documentário de Věra Chytilová que procura compreender quem foi Ester Krumbachová. Este programa é uma tentativa de recuperação de uma personalidade outrora esquecida. Ester Krumbachová (1923-1996), um nome central da vida artística em Praga, nos anos 60, foi colocada numa lista negra com a alteração do clima político da Checoslováquia na década de 1970. Os seus filmes foram banidos e só nos anos 90 se iniciou uma redescoberta do seu trabalho. Torna-se pertinente incluí-la na programação do festival quando a entendemos como uma encarnação desta tensão política. Ainda assim, a sua relevância vai além deste vínculo biográfico. Vejamos o título do programa:
“The Raisin Phophecy”, passível de ser traduzido para ‘A Profecia da Passa’, remete para a predição de um futuro de inspiração divina. Numa primeira análise, a profecia corresponde à própria narrativa do filme. Há uma cartomante que prevê um misterioso saco de passas nas suas cartas. No final do filme, como uma profecia que se cumpre, o Diabo, homem glutão, é capturado num saco e ironicamente transformado em passas. A par disto, parece haver também uma associação à mulher. Como uma predestinação incontornável, esta sente-se atraída pelo Diabo, o fruto proibido. The Murder of Mr. Devil é, neste sentido, uma profecia herética; uma evocação alegórica e crítica do pecado bíblico original.
Mas será a narrativa o único aspeto a considerar quando referimos ‘profecia’? Certamente que não. Reconhecido como o primeiro filme feminista checo, The Murder of Mr. Devil prende em si uma fascinante atualidade. Profundamente político, audaz e experimental, este filme descreve a vontade de romper com as diretrizes do realismo socialista. É o cinema da expressão individual e da emancipação daqueles que desejavam reconhecer-se nos ecrãs. E, por isso, refletir sobre este conceito implica pensá-lo enquanto precursor de uma cultura progressiva na Europa do Leste. Ester Krumbachová veio semear raízes daquilo que décadas mais tarde voltaria a ganhar um novo impulso. Retomar este filme, na 6ª edição do BEAST IFF, é encontrar-lhe um final diferente: não necessariamente feliz, mas certamente um pouco mais livre.
Maria Mendes