“Quem és, quando perdes tudo?” pergunta Yasmin Al Massri aos jornalistas na conferência de imprensa de The Strangers’ Case (Jordânia, 2024). “Quem és sem a tua família, sem as tuas memórias?”. É esta a premissa de Amira, uma médica síria cuja história abre o filme do realizador mauritano Brandt Andersen. The Strangers’ Case, que integra a secção Berlinale Special, no 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim, é uma expansão da curta-metragem que Andersen levou à shortlist dos Óscares, em 2020. O realizador pensa no cinema como portador de uma responsabilidade social intrínseca e procura levar ao grande ecrã assuntos socialmente relevantes.
The Strangers’ Case é uma narrativa dividida em capítulos, temporalmente desordenada, com recorrentes analepses devidamente identificadas. Segue um formato de histórias intrincadas que se ligam por um único fio condutor, e baseia-se no monólogo contra o discurso anti-imigração, dito por Sir Thomas Moore e escrito por William Shakespeare. A ação começa na Síria, até se colapsar na Grécia, percorrendo cinco famílias distintas.
O primeiro capítulo designa-se por “The Doctor” e cobre o inciting incident do filme: Amira (Yasmine Al Massri) vê a sua vida e crenças viradas do avesso quando tem de fugir de Aleppo com a filha, após um bombeamento que mata a sua família. A “The Doctor” junta-se “The Soldier”, que segue um soldado, Mustafa (Yahya Mahayni), que está do lado do governo sírio e cuja humanidade é colocada em cheque. “The Smuggler” tem lugar na Turquia, um mês após os acontecimentos dos primeiros capítulos. Tem como protagonista Marwan (Omay Sy), uma personagem moralmente cinzenta, cujas ações são abjetamente cruéis, sendo responsável por enviar os refugiados para a Grécia com pouca ou nenhuma preocupação com as vidas que deveria proteger. Ao mesmo tempo, é humanizado pelo filho pequeno que precisa de alimentar. Brandt Andersen, na conferência de imprensa do filme, refere-se a Marwan como o “pior da humanidade”, ao mesmo tempo que reconhece a ambiguidade da personagem: “Há pessoas que amam pessoas más.”
A ação atinge o seu pico emocional nos capítulos “The Poet”, de Fathi (Ziad Bakri), e “The Captain”, de Stavros (Constantine Markoulakis). O quase naufrágio do barco a motor onde navegam 27 refugiados em direção à Grécia gera uma situação ansiolítica e de tensão que ameaça sufocar o espectador. A sonoplastia da cena contribui para a angústia: por entre a chuva e o vento, os gritos e o choro de quem não sabe se sobreviverá à noite preenchem a sala de cinema, transportando o espectador para um cenário imersivo e duro de viver. O filme trabalha com a antecipação e o suspense, permitindo poucos momentos de respiração, o que parece deixar claro que tipo de final terão as personagens. Este, inevitavelmente trágico, exige um momento de paralisia física para processar a realidade testemunhada.
Yasmine Al Massri e Ziad Bakri surpreendem pelas suas atuações carregadas de emoção e de um realismo cru que deixa o espectador sem ar. Quando os créditos começam a passar, é quase exigido pelo filme que o espectador permaneça sentado, que deixe a história e as emoções assentarem, e que compreenda a realidade que acaba de testemunhar.
Brandt Andersen desconstrói os desafios e a tragédia da crise de refugiados em cinco agentes chave que movem a história. Atribui rostos à tragédia, que inevitavelmente obrigam a uma aproximação do espectador às personagens, que o realizador espera que se transponham para fora do ecrã. O trabalho de montagem contribui para a imersão psicológica do espectador no cenário. Quando Amira e Rasha se escondem no porta-bagagens para passarem a fronteira da Síria, sentimos o sufoco das personagens, através dos balanços sonoros, das idas para negro e do som não diegético e das conversas que decorrem fora de campo.
O guião e os atores constroem uma ambiguidade e humanização das personagens, colocando em confronto a noção de ser bom e fazer coisas más, e de ser mau e ter alguém que nos ama. Para além da personagem de Marwan, a personagem de Amira também abandona a sua moralidade a partir do momento em que a sua preocupação passa a ser proteger a filha. Para trás ficou a médica que tomava conta de heróis e vilões. Mustafa, que sancionava o pai por estar contra o governo, vê-se ele mesmo a cometer traição e a proteger as mesmas pessoas que jurou matar. A própria noção de herói e vilão é rejeitada: Constantine Markoulakis, que interpreta Stavros, na conferência de imprensa, descreve a personagem como “um homem simples que tenta fazer o necessário”. A inocência inibe a atribuição de responsabilidade social às personagens juvenis. Ainda assim, são estas personagens, como Rasha e o filho de Fathi, que têm mão na sobrevivência do grupo, apesar de, no fim, terem a narrativa mais trágica. No fundo, The Strangers’ Case é a história de pessoas que fazem o necessário para sobreviver a uma guerra na qual não tiveram mão.
A responsabilidade social transpõe o universo cinematográfico. Na conferência de imprensa, Yasmin Al Massri começa a sua intervenção com um apelo ao cessar-fogo da guerra Palestina-Israel. Enquanto antiga refugiada palestina, o filme ganha uma nova dimensão pelo fulgor com que a atriz defende as suas crenças. Na conferência, está, também, o jornalista Mahari Seghid, da African Refugees News, ele próprio antigo refugiado, que partilha o seu testemunho, emocionando atores, realizador e jornalistas. Por detrás do filme estiveram “diálogos, entrevistas e amizades”, afirma Yasmin. O compromisso de Brandt Andersen para com a causa surge desde o início: “Ele [Brandt] inventou uma nova maneira de fazer cinema indie, simulando-o como um grande blockbuster, mas dedicando o conteúdo ao cinema indie. Nunca vimos uma história de refugiados sírios contada com tanto valor de produção. Ele criou uma ONG que trabalhou proximamente com a produção no set. Formou refugiados, contratou-os, deu-lhes voz na narração das suas histórias. Empoderou as pessoas indígenas, que são os verdadeiros heróis deste filme.” (Yasmin Al Massri na conferência de imprensa).
The Strangers’ Case é um filme que procura erradicar a noção do estrangeiro. No seu lugar, apela à compreensão e compaixão com o outro, colocando-nos diretamente na pele das personagens, carregando o espectador de uma responsabilidade social que ultrapassa o medium do cinema.
Rita Pádua