A segunda sessão da competição Take One! arranca com o filme 61-63, de Ricardo Santos, um filme-correspondência, composto por fotografias e cartas que um soldado na Guerra do Ultramar envia para Portugal. Por entre as típicas fotografias de guerra vai-se instaurando o trauma, o punctum deste filme, um assombro a negro que divide os fotogramas/fotografias, que os trespassa e impõe o ritmo ao filme.
O segundo filme, PUNKADA, de Gonçalo Ferreira, vencedor do prémio Sophia Estudante-Cinema na categoria de melhor curta-metragem de ficção, acompanha Xico, um músico punk, e a sua banda, os Biqueira d’Aço, num típico caminho de sexo, drogas e rock&roll, que eventualmente leva à autodestruição da banda. Caótico, devasso e decadente, PUNKADA é um vislumbre sobre a ruína e ressaca de uma “qualquer” banda punk.REMINISCÊNCIAS DE UMA PAISAGEM DE INVERNO, de Lucas Tavares, é a última, e a mais longa, das três curtas-metragens. É o segundo projecto de cinema de paisagem do realizador – que em conjunto com o primeiro, Cores de Outono, sugere uma possível série sobre as quatro estações. Onírico, amplo e sereno, traz-nos a serra da Freita através de uma lente que não procura, mas antes espera, pela imagem.
61-63, realizado em âmbito académico para a Escola Superior de Teatro e Cinema, é uma experimentação sobre o filme de arquivo, recolhendo fotografias e cartas trocadas por um casal durante a guerra do Ultramar. O filme pretende aproximar o papel do espectador ao do destinatário, tendo para isso que arranjar um modo de superar o privilégio da montagem (enquanto os destinatário tinham por vezes que esperar semanas ou meses entre correspondências, a montagem permite condensar essa espera). Neste sentido, compensa a ausência dessa ansiedade provocada pela espera, com outras ausências, como, por exemplo, da linearidade. A cronologia de fotografias e cartas é, por esse motivo, remontada num esquema de desterritorialização e reterritorialização, que pretende reaproveitar os materiais não com um foco narrativo/cronológico, mas com um foco afectivo. Fragmentário, quer em imagem, quer em som, apresenta uma coleção de fotografias, descrições dessas mesmas fotografias e leituras da correspondência de guerra entre um casal. Acompanhamos então os fragmentos, os interstícios de uma guerra, os momentos possíveis para fotos e cartas. A guerra existe só nas sombras, só a vemos, porque não a vemos, sendo, por isso, remetida para um espaço fantasmático, de assombro, que se manifesta no filme através da narração e do desenvolvimento do trauma – quem vai, não é quem volta. O trauma é então figurado no negro, que rompe as imagens, umas vezes acompanhado por silencio, outras por narração e outras ainda por sons de bombardeamentos e tiros. Esta rutura serve um propósito duplo: o primeiro, como já mencionei, é a figuração do trauma, o segundo é a exploração dos potenciais da montagem de filmes de arquivo fotográficos. Para além do negro, na estrutura também se revelam outras qualidades oníricas, a partir dos fades, que servem como compressão atemporal (sintoma da alienação); dos cortes diretos, porventura momentos de maior claridade por entre o caos da guerra, onde se torna possível relacionar, por exemplo, uma fotografia com a mensagem escrita no seu verso (contextualizações simultaneamente necessárias e desnecessárias); e do overlapping, que, ao misturar as imagens, nos permite melhor compreender a alienação temporal dos soldados na guerra, que começam a ter dificuldades em singularizar os momentos, tornando-os mutantes, misturas entre o sonho e o real. A guerra só entra “directamente” em palavras, em mensagens de desespero, onde transparece (também pelo trabalho de voz do próprio realizador), a culpa de quem estava só a “seguir ordens”.
Punkada, pouco ou nada acrescentou, em termos de programação, aos outros dois filmes, que em vários aspectos se aproximam (pela utilização do arquivo, de fotografias, da banda sonora onírica, etc). O projecto da Lusófona, tendo em conta as condições de produção e a imagem invejável, ainda por cima filmado a película, Super16, fica muito aquém das expectativas, principalmente depois de receber o prémio Sophia Estudante-Cinema. O filme tenta embrenhar o espectador na espiral de loucura da banda Biqueira d’Aço, presumidademente alimentada por drogas. Ainda que o filme utilize um dispositivo inteligente para o fazer, a atemporalidade das cenas entrecortadas, este acaba por se tornar demasiado desconexo, mostrando apenas fragmentos quase irrelevantes e sem significado – todos os estereótipos que se esperam de uma banda punk . Aqui se encontra o cerne dos problemas de Punkada, que comete o típico erro de quebrar as regras sem as conhecer primeiro. Não só devido à importância teórica, mas também de modo a reduzir custos, maior parte das escolas de cinema em Portugal dão muito valor às técnicas clássicas (pelo menos nos inícios dos cursos), deixando as transgressividades para mais tarde. A Lusófona, porventura por não ter que se preocupar com poupanças, parece ignorar todas as regras da narrativa, o que leva a um filme desmembrado, desinteressante e pouco inteligível – uma oportunidade perdida. Acrescento o desperdício que é trabalhar com atores ótimos só porque se pode, num filme que não só não o requer, mas não dá sequer espaço aos seus atores para brilharem. Com toda a atenção mediática, dinheiro gasto e meios de produção invejados pelas restantes escolas de cinema do país, seria de esperar que a Lusófona conseguisse produzir o cinema de mais alta qualidade. No entanto, e de acordo com as tendências atuais das suas últimas produções, a escola parece continuar a apostar tudo numa boa imagem sem consideração algumas pelos muitos pontos fracos que continuam a ser notados filme após filme.
Reminiscências de uma paisagem de inverno é a segunda excursão (literal) de Lucas Tavares no cinema de paisagem. Produzido pela Universidade da Beira Interior, traz-nos um cinema raro para filmes de escola, metódico, narrativamente desinteressado e com um grande pendor experimentalista. A sensação que transparece é a de um trabalho ainda em construção, mais um passo num caminho que Lucas vai desbravando, aprendendo através do contacto, como o camponês sedentário de Benjamin. A beleza visual é impressionante, revelando o ambiente místico e onírico dessas paisagens desabitadas, às quais só acedem os seres errantes ou vagabundos. A câmara, sensível e paciente, não procura a paisagem, espera por ela. Céu, montanha e vento digladiam-se como só nessas paisagens o fazem, longe do olhar humano. Desta vez, no entanto, um espectador quase invisível na enorme amplitude da serra, capta a vagarosa batalha. O trabalho excepcional de Lucas em termos imagéticos não poderia existir, no entanto, sem as suas negligências. A montagem, “narrativa” e trabalho sonoro ficam aquém do que as imagens pedem. Com efeito, o trabalho conceptual do filme-paisagem é colocado numa posição secundária quando comparado com o excelente trabalho técnico. No entanto, Reminiscências de uma paisagem de inverno é, sem dúvida, um passo acertado, tendo provado o domínio técnico no inverno, esperemos por uma primavera mais consciente e intelectualmente arriscada.
Diogo Albarran
[Foto em destaque: Reminiscências de uma paisagem de inverno, de Lucas Tavares © Direitos Reservados]