Ouvem-se duas vozes, contam-se duas histórias, mas nenhuma personagem é visível em Trazos de Silencio, de Valentina Pelayo Atilano. Na primeira narrativa, ouve-se a voz de Valentina a descrever uma viagem de Uber pela Cidade do México. Na segunda, o actor Lázaro Gabino Rodriguez lê a crónica True History of the Conquest of New Spain, de Bernal Díaz del Castillo, sobre a conquista espanhola do México. Nenhuma das vozes possui um corpo, no entanto, elas ecoam pelas paisagens do filme como a sua matéria sensível e concreta. Sobrepostas uma na outra, o passado e presente que cada uma narra dialogam no filme numa dimensão atemporal, na qual a experiência sensorial predomina e põe em evidência a história colonial no México ao lado da violência de género.
Nos silêncios quase inaudíveis que interpelam as duas vozes sente-se subtilmente a sugestão da violência que perpassa os dois eixos narrativos em contraste com a beleza das paisagens de Aguascalientes, Altadena, Bakersfield, Cidade do México, Estado do México, San Luis Potosí, Baja California Sur, Tlaxcala e Zacatecas. À índole naturalista destas imagens, compostas por diferentes elementos paisagísticos, combinam-se os sons não naturalistas da passagem de cavalos, da água, de ferrovias, … e a marca dessa violência toma forma, substância, sempre em silêncio. A alternância entre a impossibilidade de ouvir o que se mostra e de nunca se mostrar o que se ouve gera, dentro do filme, uma alteridade, um espaço e uma dimensão outra que abrem uma fissura entre os conceitos “aqui” e “noutro lugar”, passado e presente, conquistador e conquistado, identificados por Raquel Schefer no texto dedicado ao filme. A imagem dessa fissura é povoada por uma constelação de borboletas que representam as deambulações da própria realizadora entre “um ambiente canibalista e patriarcal”, entre o México descrito em True History of the Conquest of New Spain e o México que ela conhece e vive 450 anos depois. Mais do que as diferenças que a passagem do tempo e a história deixou na terra de Valentina e del Castillo, Trazos de Silencio procura na paisagem ferida, comum à experiência de ambos, algum sinal que se projeta para lá da transitoriedade.
A gradual colonização pela escuridão da fissura atmosférica e do espaço visível de Trazos de Silencio é símbolo da realidade pré-colonial em subducção, do desaparecimento da crença ancestral na reincarnação pela sobreposição de um conceito de morte enquanto facto externo à vida, por contraste com o misticismo da morte enquanto facto interno à vida. O duplo estatuto da morte desdobra-se em duas metáforas: a borboleta que inaugura o filme, num estado de passagem da vida para a morte, e os pirilampos que inundam e se movimentam na escuridão da última paisagem, que, mais do que encerrar o filme, deixam no espectador um traço de continuidade da vida.
Pela sua natureza experimental, igualmente notável no plano narrativo e no plano formal, Trazos de Silencio propõe um outro olhar, uma outra geografia, onde se esbatem as fronteiras entre o pessoal e político e a experiência individual e colectiva se tornam uma e a mesma. Só assim a experiência de del Castillo se projecta na experiência de Valentina e a fragilidade de um ecoa na fragilidade do outro, pois, independentemente dos seus tempos e histórias pessoais, há algo de avassalador que perpassa pelos dois, que não reconhece nem bem, nem mal, nem passado nem presente, a experiência individual da mortalidade.
Cátia Rodrigues
Entrevista com Valentina Pelayo Atilano no Curtas Vila do Conde
Vila do Conde, 17 de Julho de 2022
Cátia Rodrigues (CR): Trazos de Silencio teve a sua estreia nacional aqui no Curtas Vila do Conde. O que é que te levou a escolher Portugal e o Curtas para exibir pela primeira vez o teu filme fora do México?
Em primeiro lugar, quero agradecer o teu interesse e o espaço para refletir sobre Trazos de Silencio, que, não vamos esquecer, é uma co-produção com Portugal e Espanha e que esta foi a primeira estreia do filme fora do México onde estreou no FICUNAM. Talvez deva mencionar que vivi em Portugal algum tempo durante o desenvolvimento do filme e recebi o apoio tanto do espaço de desenvolvimento Arché do Doclisboa como de Elias Quereta Zine Eskola, tendo tido o privilégio de ter como tutora principal do projecto a Salomé Lamas.
Foi uma honra e muito importante estrear o meu filme no Curtas Vila do Conde, porque é um festival com uma enorme projecção nacional e internacional e um marco entre os festivais de curta-metragens, do qual ouvi falar tanto e tão bem antes, tendo sido incentivada por amigos a enviar o meu filme.
Outra razão para o Curtas ser tão especial para mim prende-se com a hospitalidade da equipa talentosa e carinhosa do festival e de todos os que tive oportunidade de conhecer, o que torna a vivência do Curtas uma das mais singulares e extraordinárias.
CR: O teu filme envolveu muita pesquisa, como é possível ver no booklet que criaste para o acompanhar. O que é que motivou essa pesquisa e como é que chegaste ao livro de Bernal Díaz del Castillo, True History of the Conquest of New Spain?
VA: Eu saí do México com nove anos para viver nos Estados Unidos e, por isso, não aprendi na escola a história do meu país. Quando regressei ao México com 26 anos, tudo o que sabia tinha-me sido contado pelos meus pais. Mas não era suficiente para compreender o país onde nasci e para o qual regressei e o porquê de as coisas lá serem como são. Porque seria impossível estudar toda a história do México, decidi começar pelo início e procurar textos e livros pré-hispânicos e aztecas, um povo dizimado pelos espanhóis aquando da conquista do México. Um dos poucos textos que restavam e retratavam o México como ele era antes da colonização é o de Bernal Díaz del Castillo. Há rumores de que del Castillo era o próprio Cortez, o conquistador espanhol do México, o qual, porque não queria revelar a sua verdadeira identidade, escreveu True History of the Conquest of New Spain sob o pseudónimo Bernal Díaz del Castillo.
O que me atraiu neste livro, apesar de ser uma crónica sobre a conquista espanhola, não foi apenas um “olhar de fora para um território desconhecido”, mas também foi a sensibilidade das descrições de del Castillo, muito sensoriais. Num espanhol antigo, difícil de ler até, o que tornava a experiência ainda mais desafiante e fascinante, ele falava muito do espaço que o rodeava e de como se sentia nele, deixando transparecer uma fragilidade. Por isso, usei-o como bode expiatório da minha própria fragilidade, como se na experiência dele se pudesse revelar a minha. Outros dos motivos que me levou a escolher True History of the Conquest of New Spain foi a diferença da terra que eu e del Castillo partilhamos. O México que estava a redescobrir e que via é completamente diferente do México que encontramos no livro. Perguntava-me – como pode este lugar idílico de então ter desaparecido completamente? Atualmente, o México é um lugar de tensão e fragilidade, especialmente para as mulheres. Neste sentido, fui motivada por colegas e consultores que trabalhavam comigo no filme a juntar à experiência de Bernal Díaz del Castillo, a minha voz, elemento essencial da minha fragilidade.
CR: Foi daí, dessa tensão e fragilidade que encontras agora no país, que surgiu a ideia de acrescentar uma segunda narrativa a Trazos de Silencio sobre uma viagem de Uber na Cidade do México?
VA: Quando regressei ao México vivia-se um contexto de grande violência no país. O desaparecimento de mulheres e violações, algo que era comum noutras partes do México, começava a acontecer com maior frequência na Cidade do México e afectava também a classe média alta. Havia sempre uma amiga, uma amiga de uma amiga, de quem se conheciam histórias por terem sido vítimas de violência de género. Eu não sabia bem como lidar e aguentar esta realidade, tinha medo de que um dia pudessem acontecer-me alguma dessas coisas e acabou mesmo por acontecer a viagem de Uber que eu conto no filme. Penso que terá sido a primeira vez que esse medo ganhou forma na minha vida e fiquei profundamente desiludida por viver numa cidade onde isso poderia acontecer. Pela primeira vez na minha vida sentia-me frágil e essa fragilidade abriu a minha sensibilidade e motivou-me a usar o meu conhecimento, a minha voz. O objectivo do filme é precisamente transmitir estes sentimentos e experiências de fragilidade e medo, mas sempre através da beleza. Não bastava para mim, contudo, ter apenas imagens belas, eu queria poder questionar, através e com elas, o porquê de eu poder usar a minha voz. Eu queria fazer um filme que refletisse a realidade de outras mulheres, no qual esses sentimentos e experiências se tornam, através do cinema, numa experiência colectiva, com a qual, infelizmente, todas mulheres se relacionam em maior ou menor grau. Enquanto artista, acho que é da maior importância discutir estes assuntos e abordá-los no nosso trabalho. Não obstante, a verdade é que me sinto privilegiada por ter tempo e os meios para fazer um filme.
CR: O título do teu filme é Trazos de Silencio, mas nele nunca se “ouve” o silêncio. Porquê?
VA: O silêncio não existe no México. Aliás, o conceito de silêncio não existe em si. O título vem precisamente de traços de memória de um lugar. Há pausas no filme e essas pausas são os seus silêncios. Um exemplo são as imagens do pôr do sol quase no final do filme e a sequência longa e vermelha do pôr do sol no cerro del muerto em Aguascalientes, México.
No booklet pode ler-se um email do músico Bernardo Feldman, no qual fala de pregnant pauses, como algo que se pode ouvir, mas não ver. Tal e qual como os segredos. Com o Miguel Martins, designer de som, discuti muito o processo de como representar o silêncio ao longo do filme com sons subtis.
Essa é a abertura do filme, o seu sussurro, com o qual o espectador pode relacionar-se, descobrindo o seu segredo.
O título Trazos de Silencio possui um segundo sentido. É comum prestar-se uma homenagem às pessoas que desapareceram com um minuto de silêncio e foi isso que eu fiz.
CR: Que papel desempenha a paisagem no teu filme? Porquê filmar a paisagem e não, por exemplo, personagens que tornassem visíveis, corpóreas a tua voz e a voz do actor Lázaro Gabino Rodriguez?
VA: A minha decisão de trabalhar com a paisagem foi muito intuitiva. Antes de começar a fazer cinema, eu vim da pintura, nomeadamente da pintura abstracta. A representação físicade pessoas não me interessa tanto, prefiro os elementos formais, como por exemplo o som e a cor, que é muito importante para mim, que são tão vitais para mim quanto a imagem, como se pode ver na presença do vermelho no filme. Gosto de filmes simples e queria que o meu filme fosse assim. O que há de mais simples e elementar do que a paisagem? A luz é outro aspecto importante. Eu comecei o filme a falar de pirilampos num sítio onde eles não existem até se fazer noite e acabei o filme no mesmo espaço com uma paisagem iluminada por pirilampos, introduzindo o conceito de memória da paisagem. Como é que um sítio é habitado ao longo do tempo?
Os sons não naturais que ouvimos, como por exemplo as ferraduras dos cavalos, o som do metal das ferrovias, foram sugeridos pelo Miguel Martins quando trabalhávamos juntos durante a montagem, como marcas da evolução do material no tempo, na paisagem, do que desapareceu e do que foi ficando.
CR: Consideras Trazos de Silencio um filme feminista?
VA: Considero que este filme é um pequeno acto de resistência, porque abrange desde um lugar íntimo a um lugar colectivo, fragmentos de uma realidade onde a opressão patriarcal e a violência de que as mulheres são vítimas é sufocante e, em certo sentido, indissociável da opressão colonial.
Filmei quase tudo no México, mas editei fora do país, para me afastar do contexto violento que lá se vivia, tendo, no entanto, criado o filme fazendo uso desse mesmo contexto. Na verdade, precisava de alguma distância para conseguir representar a densidade e tensão do México, um país belo, mas ferido. Trazos de Silencio tem essa magia e beleza do México pré-colonização, mas também a violência e fragilidade de hoje, da invasão espanhola e do povo azteca. Escolhi mapear uma complexa constelação de questões e sentimentos passível de ser livremente interpretada pelo espectador.
CR: Por isso é que é tão importante para ti o conceito de paisagem ferida que tão bem se sente e mostra no teu filme?
VA: Sim, paisagem ferida, terra ferida. Outro dos objectivos do filme era contrastar a beleza da paisagem com a ferida aberta do colonialismo e com a fragilidade em que sempre encontramos no filme o próprio Bernal Díaz del Castillo. A presença das borboletas não é senão uma metáfora da fragilidade. Por isso, abri o filme com uma borboleta quase morta, isto é, no momento de passagem da vida para a morte. Num filme marcado por uma presença da morte, a minha voz, o movimento das borboletas são sinais da vida. Mas a parte mais difícil para mim foi descobrir como retratar essa fragilidade através do som, porque eu queria acrescentar uma outra camada, uma outra textura. A presença do som do metal foi uns dos instrumentos importantes para tornar visível essa ideia de terra ferida.
CR: Dessa noção e da presença da morte forma-se o sentido mítico de Trazos de Silencio? Mítico como uma metáfora que diz respeito tanto à história do México e da sua colonização como também ao actual estado de coisas no país.
VA: A dimensão mítica serve como uma ponte entre o passado e o presente do México. Antes da colonização, o povo azteca fazia sacrifícios, desmembrando e ingerindo pessoas como uma oferenda aos deuses. Mais do que representar a violência que já existia antes da colonização, no filme manifesta-se, metaforicamente, claro, o canibalismo que ainda pauta a sociedade mexicana contemporânea. Atrás de um país vibrante e incrível, pleno de celebrações, sons e cores, o México foi e continua a ser um país mutilado, e isso faz parte do seu ADN.
CR: Qual é a razão para teres filmado em três formatos diferentes, 16mm, 35mm e digital?
VA: Vem do acto de preservação, dos limites no momento do filmar em película e do mistério que esse momento encerra. Existe um certo mistério e surpresa associado aos formatos analógicos. Gosto de não ver o que estou a filmar no momento, porque isso me leva a tomar decisões de enquadramento mais emotivas e intuitivas, isto é, o facto de filmar em película ser muito caro, coloca limites que me obrigam a estar segura em relação à intuição do que quero filmar.
Quanto ao digital, a razão foi puramente económica. Filmar em película é muito caro e em algumas situações bastante difícil e demorado. Por exemplo, os timelapses do pôr do sol eram muito longos, tinha mesmo de filmar em digital, assim como os pirilampos, impossíveis de filmar em analógico. Além disso, o cruzamento de diferentes formatos foi uma forma de questionar as fronteiras e ultrapassar barreiras do próprio meio cinematográfico, rejeitando o pressuposto de que para cada filme apenas um formato é adequado. O cinema experimental dá-me essa liberdade.
CR: Mais do que questionar as fronteiras do meio cinematográfico, em Trazos de Silencio também encontramos uma reflexão sobre o conceito de fronteira, num sentido geográfico, e de terras fronteiriças, que coloca em causa as divisões políticas e territoriais. Consideras que este aspecto é uma consequência da tua geografia pessoal, composta por mais do que um país?
VA: Eu cresci perto das montanhas de Sierra Madre em Pasadena, Califórnia, um subúrbio de Los Angeles, depois da minha família ter deixado a Cidade do México. A diversidade paisagística e geográfica faz parte do meu crescimento. Quando penso nas fronteiras como algo que delimitam um país, lembro-me que a Califórnia fazia parte do México, quando o país ainda era uma colónia espanhola. Além da relação que tenho com ambas as terras, essa foi uma das razões que me levou a filmar parte de Trazos de Silencio na Califórnia. Sentia-me como se não pertencesse a lugar algum, uma imigrante sem terra, navegando numa esfera liminar, como as borboletas, que migram do Canadá para o México. Tudo isto são texturas do meu filme, que, no fundo, é um acto de encontrar solo, pertença, de me enraizar em algo. Como eu o penso, o meio de cinema é universal, e, por isso, o processo de filmagem foi para mim uma forma de me enraizar, não a um lugar, mas em mim mesma, para lá de qualquer território ou fronteira.
CR: Outra das principais características de Trazos de Silencio é a abertura tanto formal quanto narrativa. O teu filme contém segredos, sugestões, mas nunca um olhar último e definitivo sobre os assuntos que nele abordas, deixando espaço para que o espectador possa construir o seu próprio olhar sobre ele, a sua interpretação.
VA: Todas as pessoas que vieram falar comigo sobre o filme tinham a sua interpretação, sempre diferente da anterior e, muitas vezes, davam-lhe significados nos quais não tinha pensado ao fazer o filme. O mais importante para mim foi sempre deixar uma impressão em quem vê o filme, de modo a que ele passe a pertencer ao mundo. Trazos de silencio é uma espécie de semente que cresce no olhar do espectador, ele é colectivo e não apenas o meu filme. Neste sentido, a criação transforma-se num perpétuo diálogo, uma conversa entre mim e quem vê o filme, que completa a minha interpretação do mesmo. Inconscientemente, quando falo do filme, como estou a fazer agora, partilho contigo não só a minha experiência de o criar e de lhe dar significado, mas também todas as interpretações e experiências que foram partilhadas comigo. Isto é maravilhoso, pois são elas que mantêm o filme vivo, o tornam, de certo modo, imortal.
[Foto em destaque: Trazos de Silencio, de Valentina Atilano © Direitos Reservados]