“Estamos convencidos que o inconsciente não é um teatro. Não é um lugar onde Hamlet e Édipo interminavelmente interpretam as suas cenas. Não é um teatro, mas uma fábrica. É uma produção!”
Gilles Deleuze
Como sucessor direto de Foucault e Butler, Paul B. Preciado é, sem qualquer dúvida, uma das vozes chave no mundo da teoria queer do século XXI. Conhecido pelas suas ideias inovadoras e voz única, ao longo do seu trabalho tem vindo a desenvolver um multifacetado estudo crítico do conceito de género que se destaca pela sua abordagem livre à biografia e um refrescante ataque à “catedral” da psicanálise. Em Orlando, Ma Biographie Politique, o autor estreia-se no papel de cineasta, onde trata os seus temas fulcrais com um olhar impressionante para o mundo cinematográfico.
O filme consiste numa (muito) livre adaptação de Orlando de Virginia Woolf, a história de um aristocrata que vive séculos sem envelhecer e de quem o corpo, a um certo ponto da sua vida centenária, passa por uma metamorfose de género noturna. O filme estabelece a personagem do titular Orlando como o arquétipo de todas as vidas e corpos trans, e a partir desta analogia cria uma autobiografia do cineasta e de muitos outros atores trans, estabelecendo um jogo constante entre as suas experiências pessoais e o livro em causa (não só a sua narrativa, mas também o seu contexto histórico e natureza metatextual).
Orlando foca-se numa constante celebração do Devir e recusa à Essência, orquestrando diversas narrativas reais e ficcionais de pessoas que pegaram nos seus destinos pelo colarinho, encarregando-se das suas próprias metamorfoses físicas e sociais. Um dos seus aspetos mais interessantes é a visão de todos estes caminhos como fluídos e constantes ao invés de viagens delineadas entre um ponto A e B. Isto é exemplificado numa das primeiras cenas: enquanto está em quadro a floresta, que é usada como décor em grande parte do filme, ouvem-se vozes a transformarem-se. O filme não se limita a passar de uma voz grave e “tradicionalmente masculina” para o seu suposto oposto: cria não só momentos de sobreposição de duas vozes, como coloca também vozes sem corpo em sucessão sem qualquer desejo de procura da sua identidade de género, chegando a uma sinfonia sonora na qual os espetros de som e de género se complementam na obliteração de hierarquias.
Já era reconhecida a mestria de Preciado no domínio do texto, mas é maravilhoso ver o quão perfeitamente a sua voz artística se adapta a uma voz visual e sonora. A sua escrita pouco ortodoxa dentro do universo da crítica académica dá-se completamente ao mundo imagético que o filme tenta transpor, onde não só os seus sujeitos e temáticas são fluídos, como também a sua forma e linguagem. Observável desde o uso de uma multitude de atores, todos representando o arquétipo e personagem de Orlando (que se desdobra em infinitas tapeçarias de experiências individuais), até à repetição de frases-chave marcantes, chocantes e únicas, que tanto aparecem em ladaínhas repetidas, como em momentos musicais (“no doubt about my sex, but the fashion of the times helps me disguise it”/Dont let freud/lacan get in the history of your mindfuck/Synthetic but not apologetic. No Doctor’s Bitch. Pharmacoliberation”).
Orlando é usado como uma metáfora e ponto de partida para a exploração dos temas da obra, onde cada sujeito real, cada Orlando do século XXI, consegue mostrar a sua vida e experiência única a partir da personagem ficcional tornada em arquétipo. Mesmo maioritariamente usando o livro de forma crítica e metatextual, é espantoso o jogo que o escritor tornado cineasta faz, não só acerca dos seus temas, mas também entre a cisão e união da escrita com a imagem em movimento. Impressionante a força de uma das suas cenas mais impactantes, onde todos os Orlandos do filme se unem num consultório (tomando o papel dos médicos que os oprimem) e, de forma literalmente cirúrgica, extraem a frase “Violence was all” do livro de Woolf. Consegue ser um comentário metatextual à própria forma da obra literária adaptada ao cinema, sem perder qualquer do seu impacto emocional.
Além do lado artístico, o lado político também deve ser destacado, e acima de tudo, complexo. Mesmo tendo as frases-chaves em repetição e outros dispositivos semelhantes que poderiam remeter, por exemplo, a Godard nos anos 60, não se fica por aí. Os métodos e dispositivos são numerosos, mas a forma e a narrativa andam sempre de mão dada. Num dos maiores exemplos, o encontro de um Orlando com o seu psiquiatra, opressor que cria uma barreira humana burocrática que o separa de uma possível autonomia médica sobre o seu próprio corpo, é equiparado ao encontro, no livro de Woolf, do espírito jovem de Orlando com o poder opressor colonialista da Rainha de Inglaterra.
O filme todo ocorre, fora das poucas exceções em décors exteriores ou pré-existentes, num soundstage. O espaço poderia facilmente fortalecer um certo distanciamento e artificialidade (importante pensar nos espaços liminais de Let Me Die a Woman, de Doris Wishman, que muitas vezes é criticado pela analogia estabelecida entre a artificialidade destes espaços e a do género dos sujeitos do documentário). Isto, neste caso, é evitado através do argumento complexo e da escolha de pessoas trans para interpretar os diversos Orlandos (nos quais depositam as suas próprias histórias de vida). Dá-se ao longo da duração um malabarismo constante entre a ficção do livro, a ficção do filme e um registo documentarista onde é criado um espaço seguro onde estas pessoas se conseguem autodefinir num devir eterno onde não têm de se preocupar com respostas fixas e destinos tangíveis.
Vasco Muralha
[Foto em destaque: Orlando, Ma Biographie Politique, Paul B. Preciado © Les Films du Poisson]