Are you a bad guy or are you a good guy?, pergunta a pequena Smiley ao pai, atordoada por um sonho onde este lhe levantava a mão. Não demoramos a constatar que não é mau: entre um amor profundo nutrido pela filha e o aspecto quase infantil que se-lhe toma quando colocado ao lado da irmã mais velha, Gu Wengtong (Xin Baiqing) revela-se simpático e inócuo, mesmo que ausente enquanto pai.
The Shadowless Tower (Bai Ta Zhi Guang), do realizador chinês Zhang Lu, conquista desde o primeiro instante. Firmando-se o tom entre a discussão de sonhos e rituais apressados, vincam-se de imediato as personalidades que tomarão conta do ecrã nas próximas duas horas e meia. No papel de irmã mais velha cáustica, o timing cómico da atriz Li Qinqin brilha, e Wang Hongwei sobressai enquanto seu marido sidekick. Juntos, têm a guarda da sobrinha Smiley, a única personagem ainda incorrupta pelos calos do viver.
Gu Wengtong, crítico gastronómico, enfrenta uma crise de meia idade. Acompanhamos uma refeição em que o dono de uma tasca típica estabelece a fronteira a partir da qual se pode ser considerado “velho”: gostar-se da comida tradicional que serve no restaurante. Gu, afavelmente abatido, delicia-se com o prato que lhe é servido. Por outro lado, Ouyang Wenhui, fotógrafa excêntrica que acompanha Gu pelos restaurantes sobre os quais escreve, não é apreciadora. Seguindo o lugar-comum que se prevê em obras que retratam esta fase da vida de um homem, o atrito entre os dois é imediato.
A falta de jogo de cintura de Gu e o atrevimento de Wenhui inscrevem os diálogos num pingue-pongue onde cada tacada de Gu equivale a uma bola fora. Wenhui remata sempre com impulso, fazendo com que o homem tropece entre as palavras, cunhando aquela que virá a ser a sua frase chavão, repetida vezes sem conta daí em diante: “That’s not what I meant”.
Na dualidade entre mulher mordaz e menina que vê tudo com olhos puros de quem observa tudo pela primeira vez, Wenhui balança-se na corda bamba, a um deslize de cair no bordão de manic pixie dream girl. Há, por sorte, um embaraço que se estabelece entre as duas personagens, tornando a relação entre elas menos fantasiosa, circunscrita na esfera de uma vida muito mais caracterizada pela complacência do que por lascívia.
A presença de espelhos abunda, tanto na fotografia como no argumento – Gu é frequentemente confrontado com a sua própria imagem, e passamos a conhecê-lo ao mesmo tempo que ele se descobre a si próprio. Num processo inorgânico, a descoberta interna é explorada na mimese. Não é infrequente ver Gu a imitar, literalmente, os gestos e palavras dos que o rodeiam. Verifica-se a tentativa de parecer adequado ou inato, ou de tirar algum significado dos dramas subtis que se cruzam na sua vida, como a ausência do seu próprio pai, expulso de casa por um mal-entendido há quarenta anos.
Momentos que poderiam facilmente deixar-se imbuir de uma sentimentalidade bacoca são preteridos por aproximações tímidas e desastradas, mediadas por elipses. Os gestos de carinho são contidos, e a oferta para se limpar os óculos torna-se tão afetuosa como um afago. O reencontro com o pai, numa espécie de interrogatório policial, é uma das cenas mais espirituosas do filme; de seguida, o filho convida o pai a dançar ao som do DVD que transmite imagens de uma dança de salão. Balançam num abraço desastrado e não assumido, o nó na garganta do espectador confuso entre o riso e a lágrima. Neste sentido, há sabedoria inerente à cinematografia de Zhang Lu, que entende de intimidade e sabe perfeitamente quando esta deve ser respeitada. Nos momentos mais emocionais, afasta-se a câmara num panorama para a esquerda, atribuindo ao não-visto um significado intacto.
As referências intraduzíveis não abalam a história, traçando-se um perfil rico da cultura chinesa através de constantes referências a poetas, atrizes e canções. Zhang Lu pinta uma Pequim melancólica onde, no meio de todas as interações, resiste o templo budista White Pagoda, cuja arquitetura singular torna difícil observar a sua sombra. Reza a lenda que esta só pode ser vista no Tibet, a casa espiritual do templo, e esta dualidade ultrapassa o mito, podendo imputar-se a Gu. Preso entre Pequim e a cidade do pai, onde deixa a sua sombra; dividido igualmente entre o passado e o futuro, o justo e o injusto, o amor e a tolice.
The Shadowless Tower surge como um belo retrato das teias que ligam o ensemble de personagens a Gu em diferentes formas de amor, emoldurando o reflexo e renovando a crença na bondade. No final, o plano rima com a prosa de Lu Xun, um dos poetas que o filme benevolamente nos dá a conhecer: “I let out a yawn, light a cigarette, and blow out a puff of smoke. Facing the lamp, I silently pay tribute to these exquisite emerald heroes.”
Kenia Pollheim Nunes
[Foto em destaque: The Shadowless Tower, de Zhang Lu © Lu Films]