Categorias
73ª Berlinale (2023) Berlinale Críticas

Expatriados do amor na pista de dança

Ao som de várias batidas e de um coração que de tanto bater pode parar, o cinema europeu vibra por estes dias na Berlinale. Um dos seus maiores protagonistas é Franz Rogowski, que se estilhaça numa infinidade de rostos. Reconhecemo-lo em filmes como os de Michael Haneke (Happy End), Christian Petzold (Undine) ou Malick (Uma Vida Escondida). Nesta edição do festival, podemos ver a estrela alemã dirigida por Ira Sachs (Passages) e pelo Giacomo Abbruzzese, autor de um dos títulos mais estranhos e sedutores da competição oficial – Disco Boy.

Não é disco, mas a eletrónica de Vitalic que ouvimos testar os limites das colunas de som do Berlinale Palast. A música cobre toda esta primeira longa-metragem assinada pelo cineasta italiano, um verdadeiro pesadelo surrealista que interliga duas realidades muito distintas. A primeira, um combatente de guerrilha nigeriano (belo Morr Ndiaye) em luta trágica contra as poluentes e gananciosas petrolíferas. A segunda, um órfão bielorusso em busca de outra identidade (Rogowski, justamente), chantageado pelo sistema para servir como soldado na Legião Francesa em troca da liberdade de viver na Europa. 

Um forte homoerotismo na observação dos corpos masculinos lembra Claire Denis (Beau Travail) e atravessa a primeira parte deste Disco Boy; posteriormente, Apocalypse Now parece servir de grande inspiração aquando da entrada do bielorrusso no Delta do Níger. O encontro fatídico das duas personagens é realizado através de alucinogénicas imagens termográficas, um dos melhores e mais tensos momentos do filme, esteticamente ousado como Mandy, de Panos Cosmatos. Esta afeção visual é visceral e deslumbra, mas é a partir deste turning point que decorre uma indecidida mixórdia de reviravoltas e referências, deixando no ar demasiadas ideias soltas e simbólicas. Este excesso é nefasto e, em última instância, responsável por tornar Disco Boy uma vaidosa trip transcendental da MTV. Pelo menos, guardaremos a memória da inesquecível interpretação de Franz Rogowski que, na cena final e na sua dança de expatriado, levanta o dedo do meio à obrigação de ser reconhecido legalmente pelo Estado francês.

After, Anthony Lapia © Société Acéphale, Salt for Sugar Films

Também em Paris, o techno é motivo para Anthony Lapia contemplar os olhares, suor, beijos e fluídos que se trocam no club. A partir deste microcosmos e de planos muito apertados sobre todos aqueles que, under the influence, se permitem a conhecer, e entrecortando as cenas de dança com uma espécie de purgatório onde se dão as pausas de cigarro, conversas entre anónimos e busca por mais uma linha de cocaína ou pastilha de ecstasy, After (secção Panorama) é observacional e elegíaco. No fim da festa, restam as substâncias, a possibilidade do amor e as discussões sobre os efeitos do neoliberalismo naqueles que tentam sobreviver a uma semana de trabalho num emprego malquerido. O deslumbramento sobre a alegria contaminada é ambíguo e ainda bem. Mas After não chega perto da subversão inventiva de um Frágil (2022), que João Eça estreou muito recentemente em Portugal. 

Femme, Sam H. Freeman, Ng Choon Ping © Agile Films

Mais para norte, em Londres e com a pop, são as drag queens que fazem a festa. Femme (secção Panorama) principia-se com o ataque violento de um chav homofóbico e temperamental (George MacKay) a uma drag queen (Nathan Stewart-Jarrett) e posterior reencontro numa sauna gay. Este é o mote para um thriller sobre a tentativa de vingança e sobre um amor cínico que tenta reverter ad infinitum os papéis de vítima e agressor. No Zoo Palast, o filme recebeu ovação em pé de um público excitado que, ao longo da trama, se sentiu inteligente, em controlo sobre o entendimento de todo o esquema maior de mentiras e desenganos…. Reconhecemos a excelência da interpretação dos belos protagonistas, como também a pertinência das ideias quanto à performance sobre as máscaras que assumimos no dia-a-dia. Mas é de lamentar que a eficácia deste filme inglês, assinado pela dupla Sam H. Freeman e Ng Choon Ping, deva muito às cambalhotas do seu script e a um estilo da realização descritivo, que namora, sem originalidade, com a publicidade e com o teledisco.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: Disco Boy, Giacomo Abbruzzese © Films Grand Huit]

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *