Resistência é reinventar a vida

No dia em que Steven Spielberg apareceu na passadeira vermelha da Berlinale Palast, para receber o Urso honorário e apresentar ao público do festival Os Fabelman (o clássico autobiográfico que conhecemos no natal passado em Portugal), dois outros gigantes (mas do cinema moderno) deram o ar da sua graça neste festival de cinema. Não poderiam ser mais diferentes e, contudo, tão semelhantes no modo como radicalmente se comprometem com a sua ética e mundividência: são eles Philippe Garrel e James Benning.

Garrel surgiu hoje de manhã na conferência de imprensa acompanhado pelas duas filhas, Esther e Lena, mas sentimos falta de mais alguém, aquele que se chama Louis, justamente. Em Le Grand Chariot, os três descendentes do autor de La Cicatrice Intérieure (1972) compõem o espelho de uma outra família que trabalha para a companhia de teatro de marionetas do patriarca (interpretado por Aurélien Recoing). Tudo vai bem enquanto os vivos fazem companhia uns aos outros, mas a morte aparece e, com ela, a coragem para sonhar com outros destinos para uma vida artística que, até então, teria sido tomada como garantida.

Ao lado de Tótem (Lila Avilés), este é um dos melhores filmes da competição oficial. Visão serena e sedutora sobre as transformações nas vidas destes amigos, a delicadeza de Garrel deve à sua recusa em aceitar que triângulos ou quadrados de amor tenham de ser necessariamente bizarros ou instigadores de telenovela ou tragédia. Há quem fique irremediavelmente sozinho porque, possuído pelo egoísmo ou por um demónio artístico, estragou o amor… Mas, para lá das separações e despedidas, de todos os afetos e vontade de amar, a grande força de cada personagem advém das suas inspiradoras independência e vontade de compreender o outro. Em Le Grand Chariot, a verdadeira resistência é saber como reinventar a vida.

Allensworth, James Benning © cortesia do artista

Na secção Fórum, onde já encontrámos Susana Nobre (Cidade Rabat), James Benning olha – demoradamente (não falamos de um Spielberg) – para aquilo que do passado se presentifica. Em Allensworth, o cineasta e artista visual filmou, durante os 12 meses do ano passado, 12 planos fixos, atravessando as estações, o tempo e as memórias da primeira cidade californiana governada por afroamericanos.
Com uma energia fotográfica, James Benning percorre, metodicamente e com distância, a cidade fantasma, dando-no-la a conhecer a partir dos seus pitorescos edifícios, elementos naturais, sons e cores. O artista permite-se ser lírico quando ouvimos Nina Simone (Blackbird), Huddie Ledbetter (In the Pines) ou uma jovem rapariga que nos lê a poesia de Lucille Clifton. Mas, em Allensworth, vinga um sombrio silêncio.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: Le Grand Chariot, Philippe Garrel © Rectangle Productions]

Expatriados do amor na pista de dança

Ao som de várias batidas e de um coração que de tanto bater pode parar, o cinema europeu vibra por estes dias na Berlinale. Um dos seus maiores protagonistas é Franz Rogowski, que se estilhaça numa infinidade de rostos. Reconhecemo-lo em filmes como os de Michael Haneke (Happy End), Christian Petzold (Undine) ou Malick (Uma Vida Escondida). Nesta edição do festival, podemos ver a estrela alemã dirigida por Ira Sachs (Passages) e pelo Giacomo Abbruzzese, autor de um dos títulos mais estranhos e sedutores da competição oficial – Disco Boy.

Não é disco, mas a eletrónica de Vitalic que ouvimos testar os limites das colunas de som do Berlinale Palast. A música cobre toda esta primeira longa-metragem assinada pelo cineasta italiano, um verdadeiro pesadelo surrealista que interliga duas realidades muito distintas. A primeira, um combatente de guerrilha nigeriano (belo Morr Ndiaye) em luta trágica contra as poluentes e gananciosas petrolíferas. A segunda, um órfão bielorusso em busca de outra identidade (Rogowski, justamente), chantageado pelo sistema para servir como soldado na Legião Francesa em troca da liberdade de viver na Europa. 

Um forte homoerotismo na observação dos corpos masculinos lembra Claire Denis (Beau Travail) e atravessa a primeira parte deste Disco Boy; posteriormente, Apocalypse Now parece servir de grande inspiração aquando da entrada do bielorrusso no Delta do Níger. O encontro fatídico das duas personagens é realizado através de alucinogénicas imagens termográficas, um dos melhores e mais tensos momentos do filme, esteticamente ousado como Mandy, de Panos Cosmatos. Esta afeção visual é visceral e deslumbra, mas é a partir deste turning point que decorre uma indecidida mixórdia de reviravoltas e referências, deixando no ar demasiadas ideias soltas e simbólicas. Este excesso é nefasto e, em última instância, responsável por tornar Disco Boy uma vaidosa trip transcendental da MTV. Pelo menos, guardaremos a memória da inesquecível interpretação de Franz Rogowski que, na cena final e na sua dança de expatriado, levanta o dedo do meio à obrigação de ser reconhecido legalmente pelo Estado francês.

After, Anthony Lapia © Société Acéphale, Salt for Sugar Films

Também em Paris, o techno é motivo para Anthony Lapia contemplar os olhares, suor, beijos e fluídos que se trocam no club. A partir deste microcosmos e de planos muito apertados sobre todos aqueles que, under the influence, se permitem a conhecer, e entrecortando as cenas de dança com uma espécie de purgatório onde se dão as pausas de cigarro, conversas entre anónimos e busca por mais uma linha de cocaína ou pastilha de ecstasy, After (secção Panorama) é observacional e elegíaco. No fim da festa, restam as substâncias, a possibilidade do amor e as discussões sobre os efeitos do neoliberalismo naqueles que tentam sobreviver a uma semana de trabalho num emprego malquerido. O deslumbramento sobre a alegria contaminada é ambíguo e ainda bem. Mas After não chega perto da subversão inventiva de um Frágil (2022), que João Eça estreou muito recentemente em Portugal. 

Femme, Sam H. Freeman, Ng Choon Ping © Agile Films

Mais para norte, em Londres e com a pop, são as drag queens que fazem a festa. Femme (secção Panorama) principia-se com o ataque violento de um chav homofóbico e temperamental (George MacKay) a uma drag queen (Nathan Stewart-Jarrett) e posterior reencontro numa sauna gay. Este é o mote para um thriller sobre a tentativa de vingança e sobre um amor cínico que tenta reverter ad infinitum os papéis de vítima e agressor. No Zoo Palast, o filme recebeu ovação em pé de um público excitado que, ao longo da trama, se sentiu inteligente, em controlo sobre o entendimento de todo o esquema maior de mentiras e desenganos…. Reconhecemos a excelência da interpretação dos belos protagonistas, como também a pertinência das ideias quanto à performance sobre as máscaras que assumimos no dia-a-dia. Mas é de lamentar que a eficácia deste filme inglês, assinado pela dupla Sam H. Freeman e Ng Choon Ping, deva muito às cambalhotas do seu script e a um estilo da realização descritivo, que namora, sem originalidade, com a publicidade e com o teledisco.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: Disco Boy, Giacomo Abbruzzese © Films Grand Huit]

The Adults, um filme smaller than life

Dustin Guy Defa não é um desconhecido da Berlinale. Em 2014, competiu com o seu Person to Person ao Urso de Ouro de “curtas”, levando do festival o prémio DAAD. O cineasta é norte-americano, mas nem por isso alinha no maximalismo dos meios de produção e narrativos de Hollywood. Em vez disso, o que o autor nos propõe com a sua recente longa-metragem, The Adults (secção Encounters), é uma proposta radicalmente oposta: um filme sem plot ou dicotomias morais, um retrato minimalista, arriscamos dizer smaller than life, de três irmãos que se descobrem, sem querer, noutra fase da vida, tentando interpretar uma nova vida, uma que exige que assumam o papel de adultos.

Um abatido Michael Cera protagoniza o triângulo composto também pelas excelentes Hannah Gross e Sophia Lillis. A crónica dá-se a partir de uma viagem que o primeiro empreende de Portland à cidade natal. Dustin Guy Defa é implacável a demonstrar como a sorte e o azar perseguem este homem sem qualidades, se subtrairmos o enorme talento que Michael Cera tem em tentar provar que é o melhor jogador de póquer e divertir todos aqueles em seu redor. Nessa empresa, parece esconder uma aflitiva depressão crónica. Aliás, essa melancolia extrema perpassa o staging e montagem (co-assinada pelo realizador) de The Adults. À semelhança do seu protagonista, o filme encaminha-se humildemente sem objetivo definido. Uma reparação possível ocorre quando os irmãos relembram que se amam, apesar da tensão constante que não se explica senão no off, no fora de campo.

A Dustin Guy Defa interessa-lhe mais amar pessoas calmas, compondo com elas uma visão particular do mundo centrada no género humano, infinitamente contraditório e frágil. Numa das melhores cenas do filme, enquanto joga póquer com os amigos, Cera recorda o momento em que conheceu a morte pela primeira vez, quando viu Simba descobrir o pai morto em O Rei Leão. As suas lágrimas, que facilmente se fundamentariam pela perda da mãe, encerram algo ainda de mais complexo – o protagonista cuida de perceber se o pathos da sua retórica consegue eficazmente afetar os amigos, enquanto também tenta navegar entre várias máscaras, impedindo assim uma leitura completa das suas motivações psicológicas.

The Adults é um retrato pessoal, belamente fotografado, que atinge outro ponto alto nos momentos musicais coreografados entre os irmãos. A sua simpatia e simplicidade encontrará os seus fãs, mas não satisfará aqueles que acreditam no cinema como superação da vida.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: The Adults, Dustin Guy Defa © Universal Pictures Content Group]

Não há superpoderes que redimam a propaganda

Em Berlim, é o homem do momento. Vulnerável, Sean Penn partilha as suas lágrimas, a dada altura, em Superpower, avassalado pelo horror do decorrer dos acontecimentos nos primeiros meses da invasão russa na Ucrânia, para onde foi filmar seis vezes. Parece haver, nessa cena, a possibilidade de um homem que “chora o mundo”, ou a possibilidade do silêncio face à incomensurabilidade do absurdo da guerra e das ficções das ideologias e das fronteiras. Mas a expectativa do silêncio é depressa derrotada pelo ruído com que este objeto procura ser aconchegado.

Nada nos preparava para o panfleto propagandístico e autocentrado que é este Superpower, indigno de ser chamado de cinema, menos ainda de documentário. Começa-se por falar sobre o frágil esqueleto da ideia inicial (documentar a transformação de Volodymyr Zelensky de ator amado pelas esferas populares de todo o território da ex-URSS a presidente da república na Ucrânia). Rapidamente, depois de um vaivém de acontecimentos narrados pelas televisões norte-americanas, o objeto torna-se crónica (da equipa de filmagem) durante os dias que antecederam e procederam o dia da invasão russa e torna-se, ainda, elegia de estilo publicitário sobre ucranianos (dos jovens cadetes às mulheres que aprendem a defender-se). 

Não deixa de ser curioso que, numa montagem que torna previsível, mas faz aguardar com expectativa o encontro entre os dois atores ocidentais (Penn e Zelensky), esta reunião, feita 15 horas após a entrada do exército russo, aconteça sem nada de especial, nem química, merecedora de nota. Mais dois encontros se sucedem, e Zelensky aproveita o seu palco para urgir a celeridade do fim da guerra, viável com mais armas.

 Sean Penn na conferência de imprensa esta manhã © GETTY IMAGES

Na manhã deste sábado, dia 18, o corealizador norte-americano utilizou a conferência de imprensa para bater na mesma tecla e pedir à NATO mais armamento e mais sofisticado, nomeadamente mísseis de longo alcance de grande precisão. Trata-se de estar “do lado certo da história”, insistiu hoje Sean Penn, embora no filme o tivéssemos ouvido falar do poder do… “amor”. Parece ser esse, afinal, o seu grande objetivo com a sua presença central no filme e agora na Berlinale – marcar o seu lugar na História, à semelhança de Putin ou Zelensky. As suas palavras não comovem e as imagens dos cadáveres impressionam, mas pelo aproveitamento vergonhoso da sua montagem sensacionalista.

Uma observação final deve ser feita aos planos filmados à altura dos copos de uísque – há, no enquadramento dos copos e de Sean Penn, que fuma e bebe constantemente ao longo de Superpower, uma expressividade que reflete a sua humilde impotência e humanidade, longe de qualquer superpoder.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: Superpower, Sean Penn e Aaron Kaufman © ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES]

Em Berlim, os limites do cinema testam-se nas secções Forum e Panorama

Este ano, Susana Nobre é a primeira a levar Portugal à Berlinale. A cineasta faz no Zoo Palast, dia 18, a primeira apresentação da sua nova longa-metragem, Cidade Rabat (uma produção da Terratreme, responsável também pelo seu último No Táxi de Jack). Centrado na viagem interior de cura e transformação de uma mulher que trabalha em cinema e que acaba de perder a mãe, o filme promete ser dos mais pessoais a compor a secção Forum do Festival de Cinema de Berlim. 

O Forum, que tem por objetivo expandir o entendimento do que é o cinema, será também palco para exibir filmes como os de James Benning (Allensworth) ou Claire Simon (Notre Corps). A extensão Forum Expanded, que sai da sala de cinema sem abandonar o cinema, organiza este ano, no espaço Arsenal, a exposição coletiva “An Atypical Orbit”, que inclui a participação do fascinante Eduardo Williams, que apresenta Un GIF Larguísimo.

O Panorama, a secção mais explicitamente queer, feminista e política do festival, regressa este ano, novamente sob a alçada do programador Michael Stütz, para atribuir o Teddy Award, o mais antigo e importante prémio do cinema queer. Quando surgiu, em 1987, distinguiu Pedro Almodóvar (A Lei do Desejo) e Gus Van Sant (pelas duas curtas-metragens Five Ways to Kill Yourself e My New Friend). 36 anos depois, 30 filmes de 35 países compõem um programa diversificado que arrancou já com o filme de abertura La Sirène, de Sepideh Farsi, animação que acompanha um adolescente iraniano que trabalha como estafeta e que procura o irmão desaparecido, após um ataque devastador de mísseis iraquianos.

A cultura club como lugar de libertação, hedonismo e inebriamento será representada em filmes como o elegíaco La Bête dans la jungle, de Patric Chiha, After, de Anthony Lapia, visão sobre as vivências parisienses aconchegadas pelo techno, e Drifter, de Hannes Hirsch, errância pelas profundezas das festas e kinks de Berlim que um jovem empreende após terminar a relação com o namorado. 
Mas nem só de festa se faz esta programação repleta de títulos sobre a comunidade LGBTQIA+. Ira Sachs (Keep the Lights On) volta à realização com Passages, que, através de um triângulo amoroso, refletirá sobre o narcisismo e a inveja. Já o thriller de Sam H. Freemer, Femme, promete a vingança de uma drag queen londrina, após se envolver numa sauna gay com aquele que brutalmente a atacou.

Flávio Gonçalves

[Foto em destaque: Cidade Rabat, Susana Nobre © Terratreme Filmes]

Berlinale marca posição política e bane participantes com ligações aos governos do Irão e Rússia

É sob o signo da solidariedade que o Festival de Cinema de Berlim reafirma, este ano, o seu compromisso político com a luta pelos direitos humanos e a democracia e com a promoção do cinema como ferramenta para a resistência e mudança social. De acordo com um comunicado divulgado pela organização do evento, é através de uma série de atividades, promovidas em paralelo com a programação de filmes, que a Berlinale pretende demonstrar tanto a condenação da agressão da Rússia contra a Ucrânia, como o apoio firme dos manifestantes contra o regime autocrático do Irão.

Meses depois de ter eclodido uma onda de protestos contra a morte de Mahsa Amini e de mais 500 civis terem sido mortos pelas forças de segurança iranianas, a tarde deste próximo sábado, dia 18, será marcada por uma manifestação conjunta de solidariedade com o povo iraniano à frente do Palast, um dos principais locais do festival, que reunirá realizadores, membros do júri e das equipas dos filmes programados. O gesto simbólico acontecerá depois de uma mesa-redonda no centro de artes performativas Hebbel am Ufer, centrada no papel do cinema e das artes na Revolução Iraniana, e que contará com a presença de cineastas iranianos, curdos e afegãos. 

O apoio e a redescoberta do cinema iraniano faz raccord com a recente libertação da prisão de Jafar Pahani. Agraciado em Berlim com o Urso de Ouro em 2015 por Táxi, que este realiza e protagoniza, e preso em 2022 por protestar contra a detenção de outro cineasta, Jafar Pahani foi libertado após pagamento de uma caução e dias depois de ter iniciado um protesto sob a forma de greve de fome. Em Lisboa, o seu último Ursos não Há, que contorna a proibição oficial de poder filmar, continua a ser exibido nos cinemas UCI e Ideal (que, por seu lado, também exibe dois fabulosos filmes de Abbas Kiarostami, Trabalhos de Casa e Onde Fica a Casa do meu Amigo). Na Cinemateca, a capital continuará a ser palco de descoberta dos melhores filmes iranianos feitos entre 1955 e 2015, através do ciclo “Tijolos e Espelhos: o Cinema Iraniano Revisitado”, que se prolongará para além de fevereiro.

Apesar de não ter sido proibida a participação de realizadores ou jornalistas independentes da Rússia ou do Irão (The Siren, animação de Sepideh Farsi, abrirá a secção Panorama), a Berlinale tornou persona non grata organizações e jornalistas que colaborem oficialmente com os governos destes países. 

Outra demonstração de solidariedade ocorrerá na passadeira vermelha no dia 24 de fevereiro, um ano volvido após a invasão do exército russo na Ucrânia. O conflito será ainda objeto de reflexão em ficção (Do you love me?, de Tonia Noyabrova), ensaio poético (Iron Butterflies, de Roman Liubyii) ou documentários programados como Superpower, de Sean Penn e Aaron Kaufmann, sobre Volodymyr Zelensky (que já discursou na aberta do festival) ou Eastern Front, que Vitaly Mansky e Yevhen Titarenko filmaram na linha da frente da guerra, entre outros. 

Flávio Gonçalves

[Foto em desta: Superpower, Sean Penn e Aaron Kaufmann © The people’s servant, llc]