O díptico ambicioso de João Canijo foi um dos objectos que mais curiosidade suscitou, à partida para a competição oficial da Berlinale. Mal Viver é, de facto, um filme imponente e violento, difícil de suportar, que nos faz mergulhar na sofreguidão intensíssima desta família. Quando voltamos à tona, falta-nos o ar.
É conhecido o interesse de Canijo pelo trabalho prolongado com os actores. O realizador tem um método muito característico de composição da história e construção das personagens junto das actrizes, que participam activamente no processo de escrita e preparação do filme. A profundidade desse método fá-las viver as cenas com uma energia feroz.
O início de Mal Viver mostra-nos Piedade (Anabela Moreira) deitada junto à piscina com a sua cadela, Alma, ao colo. Na piscina e na companhia de Alma, Piedade encontra o conforto necessário para conseguir suportar o estado depressivo em que se encontra mergulhada. Contudo, o regresso inesperado da sua filha Salomé (Madalena Almeida) vem abalar definitivamente essa condição. Sara (Rita Blanco) é a matriarca da família que tenta gerir o hotel ao mesmo tempo que a tensão familiar.
O realizador é hábil no jogo do campo, contra-campo e fora-de-campo – transformando a obra num ensaio sobre o acto de enquadrar, de escolher o que se mostra e o que não se mostra. Isso está, obviamente, presente na própria proposta de fazer dois filmes no mesmo intervalo espácio-temporal, mas acompanhando diferentes personagens. É como se, neste caso, houvesse mais do que um sítio em que a câmara pudesse estar, e isso dá origem aos dois pontos de vista – Mal Viver, que segue as donas do hotel; e Viver Mal, que nos mostra os hóspedes desse mesmo hotel.
Não há dúvida que Canijo domina a linguagem do cinema narrativo e que se tornou um mestre do seu cinema. Cada centímetro é trabalhado com minúcia e isso nota-se. Mal Viver é fabulosamente envolvente ao fazer-nos acompanhar de perto o drama familiar daquelas mulheres. Nos encontros e no fora-de-campo, vamos desvendando as histórias e as personagens de Viver Mal. O facto do filme ter sido rodado num hotel durante o período de confinamento possibilitou um controlo total que o torna fechado, claustrofóbico, e onde as personagens sufocam na angústia e no desespero. No entanto, esse controlo teatral também afasta o espectador de uma relação mais emocional com o filme.
As constantes conversas cruzadas, que já fazem parte do cinema de João Canijo (algo que em Sangue do Meu Sangue resulta muito bem), criam em Mal Viver alguns momentos absurdos, principalmente nas cenas em que as responsáveis do hotel atendem os clientes à mesa, durante o jantar. Na altura de apresentar as suas sugestões do que têm no menu, as empregadas de mesa falam por cima das conversas dos clientes distraídos. Completamente ignoradas por eles, continuam a falar de forma irreflectida para o ar. Esse cruzamento de vozes é embaraçoso e nada acrescenta ao filme.
Sôfrego e tocante, o filme deixa-nos exaustos pela experiência poderosa que nos provoca, mas o resultado não é totalmente convincente. O seu lado demasiado cerimonioso e presumido afasta-nos do lado humano das personagens, deixando-nos com a secura das suas almas perdidas pelo hotel.
Ricardo Fangueiro
[Foto em destaque: Mal Viver, João Canijo © Midas Filmes]