Até que ponto é que um filme se afirma como filme?
Numéro Deux (1975) pode compreender um esforço de abstração maior do que o vulgar, já que não roça nenhum género delineado, mas sim se afirma como um exercício de experimentação de Jean-Luc Godard realizado em colaboração com Anne-Marie Miéville. Um filme, se é que o pode ser considerado, com o seu próprio estilo, que inventa a sua exclusiva maneira de existir.
Subsequente a Ici et Ailleurs (1974) e antecedente a Six Fois Deux (1976) ou a Comment Ça Va? (1976), esta obra pertence ao período do coletivo Dziga Vertov, um tempo de militância, que, no seu âmago, queria gerar confusão, perguntas, ação política, e, acima de tudo, a conquista de quem o visse de se poder afirmar como um indivíduo com uma posição crítica definida em relação ao mundo. Pretendiam, portanto, fazer os espectadores pensarem sobre si e em si próprios, bem como na natureza à sua volta e nos sistemas em que se incluem. Daí o seu intuito ser também questionar-se sobre a condição fílmica e cinematográfica, pensando até que ponto seria efetivamente considerado como uma peça de cinema e não uma sobreposição de várias textualidades.
A miscigenação de textos num movimento de libertação da própria condição de filme eleva a substância do signo fílmico a um limiar de grande originalidade. Isto pelo menos para os anos de 1975 e 1976, quando esta sinestesia de inscrições surge diante de espectadores que não esperavam uma projeção como esta se abrisse da maneira que se abriu.
Uma abertura não só ao estilo, mas também à(s) história(s) que nos vai contando, ao longo de uma textura heterogénea composta por fragmentos escritos, sons sobrepostos, imagens simultâneas em dois ecrãs e algumas personagens que constroem uma narrativa fracionada à medida que os 88 minutos perpassam. Fala-se de palavras que se inscrevem num fundo preto, mas igualmente se mostra o exercício que é fazer cinema, o trabalho que esta arte exerce e requer, evidenciando a qualidade do artista que tem de estar nos bastidores de tal produção cinematográfica. Mas pode uma projeção como esta, composta por uma hibridização de elementos e uma pluralidade de matérias, adquirir o estatuto de filme, ou não será apenas uma manifestação de um sincretismo pretensioso que se quer imiscuir com todos os que já conseguiram alcançar este estatuto?
Afirmando-se como filme ou não, coloca-nos questões de uma elevada pertinência, almejando o olhar crítico de quem vê. Apesar da sua estrutura formal causadora de desorientação ou confusão, maioritariamente devido ao trabalho de montagem, Numéro Deux apresenta-se, a nível de conteúdo, como um convite ao pensamento analítico sobre como o género e as suas construções inerentes influenciam e têm um papel preponderante nas dinâmicas de poder na nossa sociedade, usando o conceito de paisagem como metáfora para o sexo feminino e a noção de fábrica como símbolo do sexo masculino.
Explora, por isso, as relações entre homens e mulheres, sendo estruturado à volta de várias conversas entre uma família, onde a mãe, interpretada por Sandrine Battistella, e o pai, desempenhado por Pierre Oudrey, buscam discussões tanto superficiais e sem importância, como aprofundadas e acerca de assuntos relevantes, como a construção da identidade ou o sistema capitalista. Sendo também um experimento em parte erótico, este filme pensa a sexualidade como distração à existência metálica de latão que se constrói e edifica ao nosso redor, pelo que o entorpecimento e o amorfismo inalado pelos sexos é alavanca para a máquina da fábrica que se ocupará da criação de um de dois produtos finais: uma criança ou uma casualidade.
Inegavelmente, a variedade que Godard mais uma vez nos ostenta é de um exercício de criatividade tal que em vez de um ecrã, foram precisos dois, seguindo uma binariedade de lógicas que não se esgotam só neste aspeto. Aqui patentes – dois ecrãs, dois sexos – talvez serão necessários mais no futuro. Por via das dúvidas, este movimento de introdução de um elemento gerador de ambiguidade foi extremamente relevante para a construção de uma identidade de autor inigualável, que o põem num pedestal, evidenciando a originalidade da sua vasta obra.
Catarina Gerardo
[Foto em destaque: Numéro Deux, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville – © William Lubtchansky]