Chega-nos como um trovão, que arranca do asfalto a poeira e nos colhe numa energia feroz. Rodeo (2022), a primeira longa-metragem de Lola Quivoron que conquistou Cannes na seleção Un Certain Regard, estreou em Portugal na competição internacional do Indie Lisboa.
O filme constrói-se em torno de Julia (Julie Ledru), rebelde sem causa e sem casa, que procura ganhar notoriedade no mundo do cross bitume dos subúrbios parisienses. A mota é o seu paliativo, na aridez do quotidiano onde a violência é a linguagem e a dor aniquila o medo. Habituada a ser empurrada para dentro e para fora, Julia surge destemidamente à procura de um lugar num meio onde a masculinidade tem uma octanagem tóxica e os motores rugem para o horizonte longínquo.
O filme de Lola Quivoron recorda-nos a fisicalidade inerente à matriz do cinema, através de uma predominância acrobática de movimentos e de forças que atravessam os corpos em direção ao nosso olhar, de forma inovadora, num universo sintomático de westerns e easy riders. Rodeo é uma fábula ou um conto de estrada, que, apesar da previsibilidade e trama acanhada, conjuga a crueza de uma realidade dominada pelo masculinismo tóxico com a força transgressora de um corpo livre que não faz reféns. Filmado com lente anamórfica, a partir de dentro, isto é, de uma relação autêntica com os membros desta comunidade, Rodeo é um gesto fresco e franco no modo como documenta o realismo dos corpos ao mesmo tempo que constrói a sua própria mitologia.
A volatilidade motriz de Julia surge ex-machina arrastando consigo simulacros de figuras maiores do que a vida, portadores da mesma luz comovente e sombria, como Gloria (John Cassavetes) ou Thelma & Louise (Ridley Scott), e guia-nos por uma estrada sem horizonte, de familiaridade aparentemente, onde reaprendemos tudo sobre a liberdade.
Entrevista com Lola Quivoron no IndieLisboa
Lisboa, 28 de Abril de 2021
Sebastião Casanova: Fala na beleza da indefinição e no modo como o que foge ao controlo lhe é tão atraente. Quando vejo a forma como Julia conduz, imagino que seja disso que se está a falar. Como é que se gere esse desejo incontrolável durante as filmagens?
Lola Quivoron: Eu quis que este filme tivesse uma abordagem do tipo documental. Assim, o equilíbrio entre o que está escrito e o que não está existe sempre em movimento. Acredito realmente que o movimento é essencial à criação, e especialmente neste filme foi o centro de tudo, porque o movimento é o corpo dos atores, e eu concentrei-me em seguir os movimentos corporais o tempo todo. Neste filme os corpos expressam muito, até mais do que as palavras. É como um olhar sobre os corpos e como eles podem ser mais do que o físico, por isso há muitas camadas do que um corpo é em termos de representação. Para responder à pergunta, todas as sequências foram escritas e realmente preparadas, decidimos isolar-nos com os atores para preparar todas as sequências e definir o guião e improvisamos muito, reescrevi muito com eles. Depois no set, quis que libertassem toda a energia para filmarmos e por vezes era até demais.
SC: Julia carrega em si uma força maior que a vida, por vezes quase erótica, especialmente quando se relaciona com as motos que rouba, e simultaneamente lúgubre que brilha dentro dela como uma estrela. Esse corpo, como a música de abertura “Corpo Sujeito”, não pertence aqui, é demasiado raro para a Terra. Não há nada que possamos fazer, apenas aprender. O que isso deveria nos dizer?
LQ: Trata-se de ser um sujeito e não um objeto. Estamos habituados a ser objeto de olhares, aprisionados em definições estanques como corpos, pessoas, seres humanos, e o filme procura destruir esse tipo de representação. Julia (Julie Ledru) está sempre a lutar contra os olhares, em termos de repressão, sejam olhares sedutores, de um mundo dominado por homens ou talvez de um tipo fantasioso perturbador. Ela luta com a mota e com a paixão por conduzir. A mota é a extensão do seu corpo, uma maneira de se elevar. Ela encontrará uma maneira de ser livre disso e ser apenas movimento em cima da mota, soltando-se do aprisionamento dos olhares, da representação e da definição. O nickname de Julia é unconnue, o desconhecido, e é sobre como ser livre e não definida como uma mulher, por exemplo. Porque é um personagem que está realmente entre mundos, entre o espectro da representação de género, entre o mundo dos mortos e dos vivos, dos sonhos e da realidade. Por isso é livre, e sim, aprendemos sobre a experiência corporal, sobre esse ser humano que atravessa uma comunidade e quer estar no topo, ser uma lenda, ser reconhecida.
SC: Uma das coisas que mais gostei foi a visão que o filme nos dá ao estabelecer uma relação física com o espectador através da manipulação destas máquinas poderosas como se fossem a última coisa na vida, analogamente ao próprio ato de filmar. E claro, as várias referências ao cinema: a relação entre o asfalto e o deserto, as motos e os cowboys, cavalgando pelo horizonte sem medo da morte. Fez-me pensar que Julia subverte o próprio imaginário com sua moto, assim como um realizador possa ter de fazer quando filma.
LQ: Eu trabalho com arquétipos, mas não com figuras concretas retiradas de filmes. Não existe o equivalente (de Julia) ou um tipo que se possa distorcer. Mas talvez tenha pensado no Travis, o personagem principal de Taxi Driver, que é muito sombrio, misterioso, violento e amoral. Não existe personagem feminina equivalente, então pensei bastante nele para construir Julia, porque queria que ela não fosse sedutora, irreverente, violenta, e com muita raiva dentro dela. Também queria que ela fosse misteriosa e que não explicasse muito. Uma personagem sombria. Mas acho que é muito importante construir novas representações, e estou realmente conectada às teorias queer e como criar imagens dissidentes feitas com elementos que conhecemos, como clichês, estereótipos e arquétipos, mas distorcendo-os em representações plurais, novas formas, novas visões, novas emoções. Acho que Julia é o exemplo perfeito disso porque tem muitas camadas dentro das representações normativas, porque ela está entre géneros. Podia desempenhar ambos os códigos masculino e feminino, mas onde ela está realmente é entre os dois. E acho que o mais importante no filme é o que ela tem dentro dela, a sua subjetividade e a sua voz interior espiritual, e o facto do o corpo ser uma espécie de armadilha, do qual ela se quer ser livre, porque somos mais do que apenas corpos.
Sebastião Casanova
[Fotografia em destaque: Rodeo, Lola Quivoron © Les Films du Losange]