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All the Beauty and the Bloodshed: Renascer da espuma 

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All the Beauty and the Bloodshed, Laura Poitras, © Nan Goldin

O mais recente filme de Laura Poitras, que arrecadou vários prémios, entre os quais o Leão de Ouro em Veneza, é um retrato cândido da artista estadunidense Nan Goldin. Indissociável da vida, a sua obra traz-nos agora um arranjo misterioso do qual podemos colher, muito a tempo, conhecimentos de nós próprios (aproveitando as palavras de Joseph Conrad no seu romance de 1902, Heart of Darkness: “Droll thing life is — that mysterious arrangement of merciless logic for a futile purpose. The most you can hope from it is some knowledge of yourself — that comes too late — a crop of unextinguishable regrets”). 

Em seis capítulos, a realizadora faz convergir o presente e passado da artista Nan Goldin, desde as suas primeiras fotografias até ao triunfo (sempre insuficiente) contra a família Sackler, juntamente com o grupo P.A.I.N (Prescription Addiction Intervention Now) que fundou em 2017. Num magnífico gesto fílmico de Poitras, que se liga intimamente ao de Nan, através da carne (as suas fotografias) e das palavras que vai narrando, All the Beauty and the Bloodshed (2022) é um objeto que surge de uma reconstrução, renascido das cinzas do cru sustento da experiência real da memória. 

“Please, call me Nan” pediu ao público na masterclass que deu no Teatro Rivoli, em setembro do ano passado, na qual afirmou ter deixado de fotografar por considerar que hoje tinha o significado oposto do que nos mostra o seu trabalho. Não existe, na sua obra, separação da vida. Não começou a fotografar com o intuito de fazer arte mas de captar a beleza da sua única família — os seus amigos — e de a mostrar ao mundo. 

All the Beauty and the Bloodshed, Laura Poitras, © Nan Goldin

É o reflexo desta empatia que confere às suas imagens o icónico lirismo cru que alicerça a balada da sua vida. The Ballad of Sexual Dependency (1983-2022), em particular, funciona como um registo inestimável da sua comunidade, que viria a ser assombrada pelo vírus da SIDA, transformando-se forçosamente num memorial dos seus entes queridos. O olhar complexo sobre a intimidade expandiu o retrato de temas humanos universais, como o desejo e a violência, desde sempre presentes na arte. Sobretudo pela alteração de um olhar sexista sobre o nu, desafiando o espectador a entrar no olhar da artista sobre o sujeito fotografado. Em paralelo, o filme mostra como Nan renasceu dentro da força da comunidade que nunca (a) abandonou, usando agora a sua influência como artista para expor e derrubar a pretensa filantropia da família Sackler, cujo império foi erigido à custa de campanhas de marketing agressivo de fármacos altamente geradores de dependência.

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All the Beauty and the Bloodshed, Laura Poitras, © Nan Goldin

Num exercício que poderia sintetizar a obra de Nan — o reflexo universal na espuma de um mergulho pessoal — All the Beauty and the Bloodshed (título que surge do relatório hospitalar da sua irmã Barbara) consubstancia a repetição de perder o que se ama, até ser restituída a beleza da memória de forma simples. O filme de Poitras é também um engenhoso mapeamento de locais e artistas de uma certa Nova Iorque, heterogénea e palimpséstica nas suas subculturas, contribuindo, por isso, para um importante glossário artístico bem como para uma reflexão prática sobre autenticidade na fotografia.

Sebastião Casanova

[Foto em destaque: All the Beauty and the Bloodshed, Laura Poitras, © Direitos Reservados]

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