Rosinha e Outros Bichos do Mato, a mais recente longa-metragem da realizadora Marta Pessoa, estreou mundialmente no IndieLisboa. Na ribalta, a Exposição Colonial Portuguesa de 1934, realizada entre junho e setembro no Palácio de Cristal, no Porto, cujo objetivo era realçar a “grandeza do Império Português”. Aldeias erguidas nos jardins, parque zoológico com animais exóticos, réplicas de monumentos ultramarinos – o símbolo do império português, que se dizia uma grande nação por vias dos países ocupados, procurava ser um objeto de desejo.
A utilização de imagens e vídeos de arquivo, acompanhada do texto denso, é reveladora do racismo secular emergindo dos poros de um império que erotizava a imagem dos povos africanos, em específico da mulher – por isso Rosinha, a mulher-símbolo de peito nu.
O filme de Marta Pessoa, com argumento desta e de Rita Palma, apresenta no ecrã um questionamento constante sobre as práticas de uma Exposição que serviu de ode à virilidade lusa, num tempo onde muitos ainda defendem que Portugal não é um país racista. Numa exploração que transmuta o significado de nação e pertença com encenações dramatúrgicas em vários atos — destacando-se a atuação sem igual de Binete Udonque — Rosinha e Outros Bichos do Mato mantém aberta uma discussão indispensável sobre racismo e colonialismo, e a maneira como desencaixotar os arquivos pode ser uma maneira de repensar e reestruturar estigmas passados.
Entrevista com Marta Pessoa no IndieLisboa
Kenia Pollheim Nunes (KPN): Em Rosinha e Outros Bichos do Mato temos três vozes que aparecem. Duas vozes femininas em conversa e uma voz masculina que lê e explica os excertos de enciclopédias e textos ditos científicos. A narração foi sempre uma espécie de mote que conduzia o filme ou surgiu do resultado dos outros factores?
Marta Pessoa (MP): Todo o filme teve um processo de escrita e de pesquisa muito longo. Passou por várias versões. Começou por ser pensado mais como um filme já com este título em 2016, e entre esse tempo muita coisa se passou. A determinada altura, quando já tinha o material mais ou menos todo reunido, percebi que quem tinha de falar daquilo, quem tinha de dar a “voz e o corpo ao manifesto” tinha de ser eu e a outra pessoa que escreveu o argumento. Não era bem uma estreia para mim, talvez uma semi-estreia, no filme anterior já tinha começado a aparecer em campo, não com a voz, mas com a minha presença. Alguns cineastas sentem-se muito confortáveis nessa situação – eu não, por isso fiz esse ensaio –, e neste filme achei que tinha de ser eu, que tínhamos de ser nós a fazer. Foi no processo de escrita para esta versão final que nos apercebemos que tínhamos de ser nós a fazer esse questionamento, que não podíamos deixar isto em mãos alheias porque essa é a nossa História e é uma História que estamos a questionar. A partir do momento em que percebemos isso, houve essa construção e nunca mais largámos a narração do início ao fim e começou logo por aí: “que frase é esta?”, “será bom começar o filme por aqui?”, “o quê e como é que queremos contar”.
Depois, também foi evidente que precisávamos de uma voz para aqueles textos todos que fomos encontrando. Devo dizer que há uma coisa muito importante, a maior parte deste material, talvez 95% do que aparece no filme, está disponível online. Isto para mim e para a Rita Palma [co-argumentista], que construiu isto comigo e é a outra voz, foi muito importante. Todo o material fílmico está disponível online, a maioria das fotografias também, assim como grande parte dos textos. Isto para nós foi fundamental, porque assim quem quiser ter acesso a esta história pode ter, basta pesquisar. Não precisa ir a arquivos fechados, nem a caixas recônditas. Está tudo muito acessível e estando disponível, tínhamos mesmo muito texto e material. E para nós foi evidente que quem tinha de ler aquele texto tinha de ser um homem para representar a voz masculina, o olhar masculino, o discurso do regime da ditadura, o discurso oficial. Só a determinada altura é que percebemos que podia ser só uma voz. Tínhamos pensado que, como há a voz dos repórteres, do diretor da exposição, dos “cientistas” – entre muitas aspas –, podiam ser vários atores a fazer aquilo. Mas no final percebemos que tinha mesmo de ser só uma voz. Então fizemos essa maldade àquele desgraçado do Paulo Pinto, que foi muito generoso e disponível. Demos-lhe de “presente” aqueles textos “fantásticos” para ele ler. Foi assim uma construção até determinada altura, quando fixámos o modelo, o argumento, no fundo a estrutura que se vê agora no filme. Não sei se guiar é uma boa palavra, mas era a voz que tinha de guiar o filme todo.
KPN: Grande parte do filme é a montagem dos arquivos e das fotografias e dessa iconografia que mostra, como é dito no filme “os povos das colónias nas suas aldeias falsas e os portugueses na sua variedade regional”. Como é que fizeram essa montagem e curadoria de uma informação de modo a dar novo significado ao arquivo utilizado?
MP: Nós juntámos o material todo de arquivo, o máximo possível. Às vezes queixamo-nos muito dos arquivos mas, neste caso, foram muito abertos e muitos generosos. De facto, é um material muito delicado, não é para andar a circular por aí. Nesse aspecto, foram mesmo muito sensíveis e disponíveis. Tínhamos essa responsabilidade com o material, e havia muito dele produzido na Exposição Material do Porto de 1934 que nós, porque tivemos financiamento, conseguimos ir adquirindo. Os postais feitos para a exposição, muitas revistas, alguns livros, os guias, os roteiros, os mapas, as brochuras. Tendo esse material, fizemos a curadoria e fomos articulando com as questões todas que queríamos pôr. Nós achámos que tínhamos de começar o filme por isso: “e se o filme começasse como se fosse um documentário sobre a Exposição, para depois sair daí?”. É por isso que ele começa com um lado de mostrar muito o arquivo.
Depois, “e se o filme fosse só sobre a Exposição Colonial de 1934? Como é que mostraríamos?”. Mostraríamos as imagens em movimento e fazíamos esse questionamento do que está ali. Mostraríamos o material fotográfico e daí partiríamos para os outros materiais. Tentámos dar algum sentido àquela riqueza e muito material visto de uma forma que ainda é pouco vista como arquivo, especialmente o material sobre as mulheres, as quais, neste caso posso mesmo dizer, são o objeto de olhar e que circulam como objetos exóticos. Havia muitas camadas que tínhamos de desconstruir a partir do arquivo.
Quisemos começar pelo material que tínhamos e pelo material do jornal. É muito engraçado, num evento, haver assim um jornal como o do Comércio do Porto Colonial, que estava montado no próprio recinto da informação para reportar o quotidiano. Tivemos de tirar sentido do material e ver como é que ele estava a comunicar connosco. Depois disso, veio tudo o resto, desde a música, as encenações e começámos a fazer essa desconstrução e questionamento do que é que eles estavam a encenar, o que é que as fotografias estavam a mostrar. Foi daí que partimos e o filme explodiu para as outras ideias, recuso-me a dizer a palavra… “ficções”!
KPN: Tinha algum receio em usar essa palavra, mas queria muito tocar no assunto das encenações. São muito teatrais, na reencenação dos bailarinos, ou quando a Binete Undonque apresenta-se enquanto Rosinha, ou com as minhotas. As expressões parecem-me tão bem trabalhadas, o ar reverente e obediente vs. o ar soturno em outras partes. Como é que foi trabalhar com os actores numa obra tão informativa, que busca a ressignificação dessa informação?
MP: Foi exatamente como se estivéssemos a fazer uma dramaturgia. Foi tudo pensado como uma encenação. Se calhar, neste caso, mais ligado ao teatro porque parecia-nos que uma exposição seria mais aproximada a isso. Tivemos de refletir sobre a exposição colonial, o que eles expunham e como expunham. E havia a ideia, já noutra versão muito antiga do argumento, de reconstruir a exposição. Uns stands, montar umas aldeias, essas coisas todas. Isso foi sendo depurado e percebemos que tinha de haver um trabalho performático e de encenação, mais próximo do mundo teatral e da dança. Nós trabalhámos com uma coreógrafa, a Joana Bergamo, para refletir e trabalhar sobre a peça de Jean Philippe Rameau, Os Selvagens, que remonta também a uma história colonial comum ao colonialismo europeu. A partir dessa peça, tentámos pensar quais são as várias versões.
O caso das minhotas foi muito específico. Houve um contacto direto com o Grupo Etnográfico da Areosa, um grupo muito aberto e que percebe estas questões. Elas foram muito corajosas em aceitar o trabalho. Nós falámos muito e elas acharam muito importante falar destas questões relacionadas com o racismo e desconstruir estas ideias feitas do que é a etnografia, o típico, a representação, o que é um português. Aquilo que estava presente, dos portugueses a aprenderem o que um português deveria ser, que foi uma ideia também muito explorada no Estado Novo e que ainda hoje se sofre com isso.
A solenidade é uma solenidade do próprio grupo, por isso isso foi muito fácil. Aquilo é tudo muito precioso, elas fazem tudo de uma forma muito preciosa e muito precisa, muito profissional. Aí não tive de fazer nada. O que faz parte do trabalho de quem olha e de quem cria é aquilo que eu e a coreógrafa precisámos ver como é que elas faziam e inspiramo-nos no próprio trabalho etnográfico tradicional para ver como podia ser feito.
Com a Binete, foi mais direto, porque ela é uma atriz profissional, tem feito muito trabalho no teatro e agora também no cinema e, até pelos trabalhos que ela tem desenvolvido, reflete muito estas questões. Foi outro tipo de trabalho.
Com os miúdos [da peça Os Selvagens], foi ainda outro tipo de trabalho porque foram alunos da própria coreógrafa. Percebemos como é que eles se relacionavam, que contacto é que tinham com as questões do que é ser português, do que não é, questões raciais e étnicas. O universo deles foi sempre como alunos de dança e era aí que eles estavam, e pusemos-los em confronto com uma realidade que eles não faziam ideia de ter acontecido, de ter havido zoos humanos no Século XX – para mim é chocante mas eu nasci mais perto, nesse século. Eles, nascidos no século XXI (isto continua a causar mesmo muito espanto), repudiaram aquilo, mas perceberam que há muita gente que se calhar não acha aquilo assim tão repugnante como é. Eles perceberam que ainda é uma realidade e que no futuro ainda terão de lutar contra isso.
KPN: Passando às últimas cenas no museu de ciências naturais. É muito adequado acabar o filme num sítio cuja tarefa é, de certa forma, embalsamar o tempo, literalmente. Num dos últimos planos, as duas narradoras olham para os esqueletos de primatas — há alguma mensagem mais profunda ou filosófica que tentou passar com esse plano? Outra questão relacionada é se vê este filme também como uma tentativa de embalsamar aquele tempo, especialmente numa altura em que estes temas seculares, que sempre estiveram presentes, ressurgem com ainda mais força atualmente.
MP: O museu é o Museu de Ciência da Universidade de Coimbra. Aquilo é a secção zoológica, é um museu que está em transformação como muitos, e é aliás isso que digo no filme. Sempre tivemos a ideia de acabar com um museu e com essa ideia da taxidermia não só para falar com esse “bicho empalhado”, mas para questionar sobre o que é um museu e o que pode ser um museu na e para a memória futura. Não é uma coisa fechada e há coisas que podem ser desconfortáveis para nós, não só com o animal embalsamado. Mas é pensar como é que nós pensamos no passado, como é que pensamos essa informação, porque estou convencida que não é deitando as coisas fora, não é escondendo, não é reescrevendo, não é deformando. É dando mais informação, mostrando mais. Estar em constante pensamento e em constante movimento. É isso que aquele museu especificamente está a fazer. O último plano é com as caixas numa sala, que não foram valores de produção, não fomos nós que pusemos aquilo lá. Aquilo era a seção antropológica do museu porque ele estava em obras e estava tudo empacotado. Encaixotar, guardar, tirar do olhar. Ali é transitório, porque aquilo está encaixotado para se repensar como é que se pode voltar a dar a ver. Isso é o mais importante — voltar a dar a ver e estar em constante reflexão. O que é que isto significa, o que pode significar, como é que nos relacionamos com o passado, como é que voltamos a trazer o passado para dialogarmos. Acho que o Museu é isso e tem de ser isso.
Tento não pôr essas questões — é claro que filmámos os esqueletos dos primatas mas não tenho resposta para se é metafórico ou não. Foi uma coisa muito prática e às tantas é o lado daquele cineasta prático e infantil que tem de haver: “que bonito que isto é, vamos fazer um plano assim, vamos ver se funciona e se depois nos vai trazer algum sentido”. E algum sentido trouxe porque aquele plano esteve sempre ali e foi sempre pensado com aquela versão da música em piano, que remete automaticamente, pelo menos para mim, para uma coisa mais de salão, do século XIX e que combinava muito bem com aquilo, mas não houve essa questão. É claro que nós pensámos… é claro, esqueletos de primata, o que é isto vai dar? Mas avancemos! Tentámos deixar muitas coisas em aberto para que haja diálogo com o filme.
KPN: Falou muito da questão etnográfica presente no filme – quais, se houver, realizadores ou tentou transpor para este filme.
MP: Ah, nunca expor os nossos mestres…! Com certeza que sim. Mas posso dizer outra coisa. Há muitos realizadores portugueses que fizeram trabalho e que não conseguiram fazer mais por diversas razões e há uns que foram esquecidos e que de vez em quando são recuperados. Um deles é o António Campos. Falo dele porque durante muito tempo pouco se falava nele ou falava-se como cinema amador. Não tenho formação em etnografia nem antropologia — há muitos realizadores portugueses que têm essa formação, a minha é em cinema, mas lembro-me do António Campos porque durante muito tempo falou-se nele como alguém secundário. E, às vezes, isso prejudica o nosso olhar sobre o país. Tem de se olhar, nem que seja para se recusar. Por isso, falo do António Campos. Falemos de António Campos.
Kenia Pollheim Nunes
[Fotografia em destaque: Rosinha e Outros Bichos do Mato © Três Vinténs]