Há recantos em Portugal que parecem ter sido esquecidos pelo tempo. Aldeias e vilas que persistem, erguidas como monumentos de uma certa maneira de viver, já praticamente extinta, como Manuela Serra teria previsto no fatídico plano final do seu O Movimento das Coisas. Cerca de 40 anos depois, estes mesmos lugares tornaram-se millieux onde diferentes energias geracionais convivem. Aqui, a resistência ancestral dos mais velhos contrasta com a inquietude dos mais jovens, motivados pelo impulso de explorar o que há “lá fora” e o espaço que ainda têm para sonhar.
Légua, de Filipa Reis e João Miller Guerra, que teve estreia na mais recente Quinzena dos Realizadores, em Cannes, tem no seu núcleo este mesmo conflito, enraizado na aldeia homónima em Marco de Canaveses e as personagens que lá habitam. Em particular, Ana e a idosa Emília, carinhosamente apelidada de “Milinha”, caseiras de uma antiga moradia senhorial com o nome de Casa da Botica. Juntas, rotineiramente mudam os lençóis das camas (cada conjunto devidamente organizado e etiquetado), tratam das plantas do jardim, limpam o pó e pulem a prata dos talheres. Tudo para melhor receber os donos-fantasma que porventura nunca voltarão a pisar o chão que as duas mulheres tanto cuidam e que apenas chegará a ser palco de um Manuel Mozos em vestes irónicas de padre. Este, irmão da Senhora, tanto deixa as compras por pagar, como se esforça para retirar o “triste crocodilo” do seu novo polo, não hão de os compadres jesuítas julgar.
Não obstante, Milinha parece encarar o trabalho como a sua missão de vida. É, no sentido mais literal, a sua casa, embora durma num quarto mais modesto na cave, cujo acesso obstruído por degraus traduz-se numa batalha para o seu corpo frágil. Apesar de não considerar a moradia sua, é claramente lá que sente pertencer, regendo-se, no entanto, sempre perante a hierarquia da sua empregabilidade. Não desafia esta condição e lastima Ana, quando esta demonstra sinais de contestação perante o sistema segundo os quais regem os dias de trabalho. Será punida, se deixar o quadro torto? Sim, mas apenas por Milinha.
Na dinâmica entre ambas, e ainda Mónica, filha de Ana, que estuda engenharia no Porto, presenciamos uma linha contínua da relação geracional com o meio. A mais nova e a mais velha, representando opostos, e Ana, suspensa no limbo entre ir e ficar, o novo e o velho. Inicialmente, descobre-se que planeia emigrar com o marido para França, na esperança de melhores salários, que os ajudarão a acabar a construção de uma casa própria. Contudo, decide ficar, quando descobre que a colega está doente. Sabe que Milinha, dada a escolha, preferia ver a sua vida concluída na única casa que conhece, junto das várias caras familiares, emolduradas em fila nas prateleiras. Desta forma, o cuidado da casa converte-se no cuidado de Milinha e um testemunho dos ritmos da morte, encenada aqui por uma não-atriz, cujo sóbrio poder se manifesta na vulnerabilidade da sua entrega.
Perante este exercício, o tempo permanece aquilo que pontua o filme. Acompanhando as várias repetições que compõem os nossos dias, e os transformam em meses e anos, Filipa Reis e João Miller Guerra fazem questão de sublinhar continuamente a passagem das estações e o crescimento das plantas como forma de espelhar o ciclo vital. No centro destas flutuações intermináveis, a Casa da Botica perdura enquanto monstro estanque, microcosmo que aloja transições, aparentemente sob a condição que estas não o afetem.
Em contrapartida, Ana parece curvar-se perante a mudança, adaptando-se às suas mais variadas facetas, como mais um passo no fluxo natural do mundo. É uma personagem que Légua rapidamente nos apresenta em consonância com a sensibilidade das coisas. Uma mulher aberta à sensualidade e às emoções que podem surgir, até no simples ato de pôr creme enquanto se canta “Amor de Água Fresca”. Entregando-se ao prazer dos pequenos momentos, reconhecemos nela a poética do ato de regar as plantas, de estender lençóis lavados, apanhar sol num dia ameno e mergulhar nas águas frias do norte de Portugal. Atendemos aos pormenores e às nuances de cada sentido – o toque, o olhar, o cheiro, o sabor -, despertados pela atenção da câmara e pela humilde magia da presença de Carla Maciel.
Mas para além destes atos facilmente romantizados, desaceleramos com ela, numa entrega mais dura. Fala-se aqui de mudar a fralda de Milinha, de ajudá-la a tomar banho e tão carinhosamente servi-la caralhinhos de São Gonçalo, acompanhados de chá servido na mais fina loiça, que a colega de outro modo provavelmente nunca teria tocado. Vislumbramos o que parece vir a ser o último instante prazeroso, uma espécie de canto do cisne da sua devota servidão, agradecida em contrapartida pela visita de uma agente imobiliária.
Dando um passo para trás, vemos como a relação de Milinha com a casa e os seus objetos em muito espelha o seu estado de saúde, que deteriora à medida que a mesma se insere gradualmente, e apenas por necessidade, nesses espaços e gestos proibidos aos serviçais. Quando a conhecemos, desempenha as suas tarefas com brio, retirando-se ao fim do dia para o seu quarto no andar de baixo. Contudo, à medida que se torna progressivamente mais debilitada, vemo-la, contrariada, mudar-se para um quarto de hóspedes e, mais tarde, para a própria sala de estar, onde a sua cama articulada ocupa proeminentemente o centro da divisão e ela dificilmente limpa os copos de cristal.
Paralelamente, virgulando a rotina sóbria das duas mulheres, surgem impulsos de um certo desejo experimentalista que evoca o tal confronto geracional no cerne da narrativa. São instantes estes que se revelam em quebras, sejam estas visuais ou musicais, por vezes sublimes e por outras disruptivas. Neste último caso, uma prática de certo modo inclinada à mais jovem Mónica, no que parece ser uma tentativa de porventura destacar a personagem, posicionada num patamar em desequilíbrio com as demais. Não deixa de ser, contudo, interessante testemunhar o choque entre a contenção inerente ao 4:3 em que Légua nos chega, os granulosos 16mm, e essa quebra temporal e visual, que a certo ponto até ataca os sentidos que o próprio filme despertou.
Serão estas as pulsações do coração complexo que é Portugal – um país que, tal como Ana, se encontra no limbo entre os gestos ancestrais e a ambição contemporânea que o percorre? Independentemente da resposta e da incerteza do futuro, enquanto espectadores observamos a tesoura de Átropos corroer o fio de Milinha, e o que ela representa, linha a linha.
Margarida Nabais