Lituânia soviética, década de 1970. Laimis Janutėnas, pescador agora reformado, gravou durante esses anos as suas viagens intercontinentais a bordo do barco de pesca industrial onde trabalhava. Aos 80 anos, dizia que as imagens em 8mm só tinham sido vistas pela sua companheira Marytė Janutėnienė. Foi então que Laimis chegou ao contacto com o realizador Rimantas Oičenka, pedindo a este que fizesse algo com as suas imagens e que as partilhasse com o mundo.
O resultado é este Reisas (The Trip), uma viagem no navio pesqueiro e uma viagem nas memórias de uma história de amor. Sem sentimentalismos desproporcionados e acertando na dose de nostalgia, a curta parte desse arquivo para nos dar um olhar sobre a Lituânia daquela época, reflectindo sobre a tensão existente com os ideais soviéticos instalados no país.
Delicado na execução, pertence àquele género de documentários empenhado em contar ao detalhe, de forma precisa e eficaz, a história daqueles que retrata. Os primeiros planos mostram-nos esse encontro com Laimis e Marytė nos dias de hoje, na sua sala de estar, onde vão remexendo em correspondências e fotografias que trocavam na altura em que Laimis embarcava durante largos meses. Rimantas apropria-se das imagens de Laimis para as remontar numa lógica narrativa que pretende encenar os momentos vividos pelo casal. As imagens filmadas por si são relativamente poucas e servem para enquadrar e contextualizar aquilo que, no presente, significam as imagens de arquivo. Por exemplo, o plano que abre o filme é uma escultura de um elefante que, percebemos mais à frente, foi algo que Laimis adquiriu numa expedição por África.
De um ponto de vista de ecologia das imagens, o que Rimantas faz é perceber o potencial cinematográfico daquelas filmagens amadoras, reorganizando-as, para formar este “voltar ao passado”, sensação essa que é reforçada pela decisão de sonorizar, através da técnica de foley, as imagens mudas. A decisão de colocar esses sons, é onde reside a força e o interesse particular deste Reisas. Essa escolha está profundamente ligada a uma tentativa de recuperação da memória, representando uma viagem no tempo, em que a nostalgia é substituída por um uso pragmático do arquivo. Assim, o que vemos já não são imagens fetichizadas do passado, tornando-se, pelo contrário, um meio de transporte para o presente que há nelas. Esse é o grande feito de Oičenka. A viagem do título é a viagem no mar, na sua história, mas sobretudo a viagem no tempo.
Um dos últimos planos do filme é uma longa contemplação do rosto de Marytė, onde se podem ler as marcas desse tempo, mas também onde se reconhece a felicidade apaziguadora que as memórias da sua história de amor lhe trazem. Laimis aproxima-se e serve-lhe mais chá. Ela olha-o de relance. E a viagem de ambos continua.
The Trip foi o filme escolhido pelo júri do Beast International Film Festival para o prémio East Doc, que distingue o melhor documentário em competição no festival.
Ricardo Fangueiro
Entrevista com Rimantas Oičenka, conduzida por Maria Mendes
*For english version, see below.
Antes de mais, parabéns pelo prémio de melhor documentário no BEAST IFF. Sei que “The Trip” é a tua primeira curta-metragem, feita de imagens de arquivo produzidas em 1975. Portanto, a minha primeira questão seria: Como te cruzaste com essas imagens?
Eu recolhi este arquivo de um homem que, de alguma forma, me encontrou e me contactou há uns 6 anos. Temos alguns amigos em comum. Então, ele era um pescador que costumava fazer algumas gravações, com a sua câmara de 8mm, enquanto pescava. Ele guardou todo esse arquivo na sua casa e quando me encontrou, disse-me: “Eu filmei muito, mas nunca ninguém viu este material, à excepção da minha mulher. Tenho 80 anos, por isso assumo que vou morrer em breve e quero que as pessoas vejam o que eu filmei”. Ele só me perguntou “consegues fazer alguma coisa com isto?” E tudo começou aí.
Depois, eu vi todo esse material, e foi muito interessante para mim. O problema é que quase tudo era sobre a indústria da pesca e a pesca não me interessa. Na verdade, eu sou contra a indústria da pesca, por isso tive que encontrar algo pessoal nesse material. Não soube imediatamente o que fazer, mas eu sabia que queria fazer.
Ainda que a pesca não seja algo que te interesse, “The Trip” é um documentário sobre a indústria da pesca na Lituânia soviética. Eu quero saber como é que tu achas que isto é importante e como o filme representa a Lituânia de um ponto de vista mais histórico ou político.
Em 1975, a Lituânia fazia ainda parte da União Soviética. Nós éramos ocupados pelos soviéticos, e eu acho que isso foi uma das razões pelas quais eu decidi fazer este filme. Agora que vivemos num país independente outra vez, eu queria falar de como era a situação política e de que como as pessoas costumavam viver durante esses tempos. Isto é muito importante para mim.
Então, “The Trip” foi um esforço de aproximação a algo relacionado com o passado do teu país. Este filme está relacionado contigo de outra maneira?
Na verdade, sim. Quando eu comecei a falar cada vez mais com o homem que filmou isto, eu também conheci a sua mulher. Primeiro, ela não queria contactar comigo. Pensava que eu só estava curioso sobre as viagens pesqueiras do seu marido. Mas eventualmente, eu também estabeleci uma conexão com ela, e fiquei muito impressionado com a relação deles enquanto casal. Eles estavam casados há mais de 50 anos.
Eu casei-me na mesma altura em que eu recebi este arquivo e descobri uma série de relações entre a minha vida e a vida deles em 1975. Estávamos a viver coisas parecidas. Eu e a minha mulher tínhamos casado recentemente, estávamos à procura de um novo apartamento, e a minha filha tinha acabado de nascer na altura. Descobri que, através da história deles, eu podia falar sobre aspectos pessoais da minha vida.
Para além disso, outra parte importante deste filme são as cartas. Eu perguntei, ao Laimis e à sua mulher, se eu podia ver as cartas que eles escreveram um ao outro quando o Laimis ia nas suas viagens pesqueiras. Eles guardaram todas as cartas e, eventualmente, deram-mas. Foi aí que eu encontrei todos os detalhes sobre eles: como se conheceram, a sua relação… E é engraçado, porque na altura eu estava a viajar pela Lituânia a organizar sessões de cinema ao ar livre e a minha mulher estava sozinha em casa com a nossa filha. Foi outra semelhança que encontrei entre nós e este velho casal.
Penso que a forma como sonorizas as imagens de arquivo é muito curiosa, porque nos transporta para aquele tempo. Como é que foi a construção da voz-off que narra o filme?
As cartas foram lidas por mim e pela minha mulher. Foi durante o tempo do Covid, quando não podíamos encontrar-nos com mais ninguém. A minha ideia original era encontrar alguns actores e actrizes para lerem essas cartas. Mas primeiro, queria ter alguns rascunhos, algo para começar a trabalhar. Para isto, gravei com o meu telemóvel e pedi à minha mulher para fazer o mesmo. Mais tarde, quando eu estava a tentar encontrar actores eu percebi que tinha ficado muito ligado à gravação provisória e decidi mantê-la dessa forma.
E como foi o processo de montagem e seleção das imagens para o filme?
Não havia muito material. Eram cerca de 5 horas de filmagens. Quase tudo era muito bom, então foi difícil escolher. Ao mesmo tempo, eu já sabia o que queria e escolhi as imagens que representavam melhor os sentimentos que eu queria enfatizar.
Isto é bastante claro na cena da partida, quando os pescadores dizem adeus, mas também na cena final, onde eles estão a voltar após cinco meses naquela viagem.
Por falar em viagem, acho que esta é a minha última questão: De onde vem o título deste filme? É porque descreve uma viagem – através da memória, a vida de um pescador, mas também o passado da Lituânia? O que pensas disto?
Primeiro, eu decidi que o título inglês seria “The Trip”, mas eu acho que foi um erro. Devia tê-lo chamado “A Trip”. Talvez tenha acontecido por causa do meu inglês pobre, mas eu acho que há uma grande diferença entre “the” e “a trip”. Além disso, a minha ideia principal para este título era que ele tivesse diferentes significados. A viagem podia ser esta viagem pesqueira em particular, mas também o casamento e conexão entre duas pessoas. Para mim, 50 anos juntos e continuarem bons amigos, é uma bela viagem.
Entrevista conduzida por Maria Mendes
Interview with Rimantas Oičenka, conducted by Maria Mendes
First of all, congratulations on winning the best documentary in BEAST IFF. I know that “The Trip” is your very first professional short movie and that it is made out of archive footage from 1975. So, my first question would be: How did you come across this footage?
First of all, I got this archival footage from one man who somehow found me and called me like 6 years ago. I have a few common friends with him. So, he used to be a fisherman and used to record some videos with his 8mm camera while he was fishing. He kept all of this footage at his house and when he found me said: “I was filming a lot but no one has seen this material except my wife. I am 80 years old, so I assume I’m probably going to die soon and I want people to see what I recorded.” He just asked me “Can you do something with this?”. This was the beginning.
Then, I watched all that material, and it was really interesting for me. The problem was that almost everything was about fishing and fishing is absolutely not my thing. I’m actually against the fishing industry and so, I had to find something personal in this material. I didn’t know immediately what to do with this but I knew I wanted to.
Even though fishing is not your thing, “The Trip” is still a documentary on the fishing industry in Soviet Lithuania. I want to know how you think this is important and how this film represents Lithuania more historically or politically.
Back in 1975, Lithuania was still part of the Soviet Union. We were occupied by the Soviets, and I think this was one of the reasons why I decided to do this film. Now that we live in an independent country again, I wanted to talk about how the political situation was, and how ordinary people used to live during those times. This is very important to me.
So, “The trip” was an effort to get closer to something related to the past of your country. Is this film related to you in any other way?
Actually, yes. When I started to talk more and more with the man who filmed this, I also met his wife. At first, she didn’t want to get in contact with me. She thought that I was only curious about her husband’s fishing trips. But eventually, I also established a connection with her, and I was very impressed by their relationship as a couple. They were married for more than 50 years.
I got married at the same time I received this archive and I found a lot of relation between my life and their life back in 1975. We were living very similar lives. Me and my wife were recently married, looking for a new apartment, and my daughter was a newborn at the time. I found that through their story I could speak about personal aspects of my life.
Also, an important part of my film is the letters. I asked them, Laimis and his wife, if I could see the letters they were writing each other when Laimis went on the fishing trips. They kept all of the letters and eventually gave them to me. That’s where I found all the details about them, how they met, their relationship… And it is funny that at the time I was traveling around Lithuania organizing open-air cinema screenings and my wife was also at home alone with my daughter. This was just another similarity that I found between us and this old couple.
I think that the way you chose to sound the archive images is very curious because it takes us back to their time. How did this idea come about and why is it important for the film?
The letters were read by me and my wife. It was Covid times when we couldn´t meet with any other people. My original idea was to find some actors and actresses to read those letters. But first, I wanted to have some drafts, something to start working with. For this, I just recorded it with my phone and asked my wife to do the same. Later, while I was still trying to find some actors I understood that I had become very close to the draft and I simply decided to keep it this way.
And how was the process of montage and selection of the images for the film?
There wasn’t a lot of material. It was about five hours of footage. Almost everything was really good so it was kind of difficult to choose. At the same time, I already knew what I wanted so I chose the images that represented better the feelings I wanted to emphasize. This is very clear in the departure scene, where the fishermen are saying goodbye but also in the final scene, where they are coming back after five months of that trip.
Speaking of trip, I think that my last question is: Where does the title of this film come from? Is it because it describes a trip – through memorý, the life of a fisherman but also the past of Lithuania? What do you think about this?
First of all, I decided that the English title would be “The Trip” but I think it was kind of a mistake. I should call it “A Trip”. Maybe it happened because of my poor English but there is quite a big difference between ‘the’ and ‘a’ trip. Besides this, my main idea for this title was that it could have different meanings. The trip could be this particular fishing trip but also the marriage and connection between two people. For me, 50 years together and still really good friends is a wonderful trip.