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DocLisboa: The Nothingness Club – Não Sou Nada (2023)

O DocLisboa tem como intuito a exploração de representações únicas da realidade. Quer seja por meio de um experimentalismo ou pelo desafio das conceções do passado, promove filmes que ofereçam novas maneiras de percecionar o mundo. The Nothingness Club – Não Sou Nada (2023) de Edgar Pêra é um deles, afigurando-se como um documentário mental sobre a entrada nos modos de pensamento de Pessoa.

Embrenhado no efeito nebuloso de uma mente patologicamente manchada, é oferecida ao espectador a oportunidade de inserção na realidade deturpada do mais enigmático poeta português: Fernando Pessoa. Baseada nos seus poemas, assiste-se à costura de uma narrativa própria, porque não se trata do real, mas sim de uma distorção onírica do mesmo.

Poder-se-ia afirmar que este filme era mais um ao lado dos demais que basearam as suas linhas orientadoras nos poemas deste grande escritor – e ainda bem que há tantos assim –, mas seria insensato declará-lo de facto, porque não se apresenta como um Filme do Desassossego (2010) ou um La gentilezza del tocco (1987). Pelo contrário, esta obra, escrita de forma perspicaz por Edgar Pêra e Luísa Costa Gomes, constitui-se, de forma anacrónica, como uma perspetiva refrescante (apesar de alucinante), com um ritmo fílmico muito particular, um Pessoa entre todos os outros.

O barulho gritante da sinfonia das máquinas de escrever, esta musicalidade intrínseca ao ato de escrever mestrada por ele próprio, constitui a personificação dos acessos de loucura febril de uma alma perturbada por esta multiplicidade de imaginários labirínticos. Uma agitação do sonoro de tal ordem, impele o espectador para um quarto coberto por espelhos quebrados, onde se instala um clima de terror psicológico, onde são refletidas imagens pertencentes à ordem do não-real.

The Nothingness Club – Não Sou Nada, de Edgar Pêra – © Direitos reservados

A fragmentação do “eu”, os dramas íntimos e a dimensão fantasiosa presentes nos poemas de Pessoa são de tal modo vinculados pela técnica. Quer seja pela câmara lenta e pela voz-off, que adensam o teor psicológico das personagens, quer seja pela banda sonora habilmente trabalhada por Artur Cyanetto e Jorge Prendas, quer seja pela sobreposição e justaposição de imagens, construída na montagem de Tomás Baltazar e Cláudio Vasques, nota-se, aqui, um cinema criador de dimensões imaginárias a partir de dimensões técnicas, usando a técnica para estabelecer esse imaginário estranho e labiríntico, através de um movimento de embriaguez alucinogénica. 

Sente-se o ambiente caótico, o contraste entre o espaço ficcional e o real (o escritório e o hospício), espaços que se contaminam, se devoram e se iluminam. Observa-se Lisboa numa distorção delirante através do cinema – e assumimos o papel de um dos muitos heterónimos, sentido o que ele sente, mas à nossa maneira singular e subjetiva. Constatam-se as fascinantes performances de Miguel Borges, atuando como Fernando Pessoa, um espectador de si mesmo que se procura a si e à sua essência; de Victoria Guerra como Ofélia, um elemento sedutor no meio dos cenários, um indício de cedência da racionalidade ao sentir inerente à condição humana; e de Albano Jerónimo, que é Álvaro de Campos, o corroer de várias personalidades que vão morrendo aos poucos com ele.

Aqui, vê-se o gesto e o grito. Aqui, experimenta-se o cinema, que tem o poder de elevar quem vê à condição de quem sente, num delírio estonteante, numa visão múltipla e deturpada do mundo, que só Pessoa poderia conceber.

Catarina Gerardo

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