Fiesta Forever (2016) | Flores (2017) | Past Perfect (2019)
Passado, futuro, vazio e fértil, documentário e ficção. Nas curtas-metragens Fiesta Forever, Flores e Past Perfect, Jorge Jácome explora o peso do Tempo e dos Espaços liminares, criando um cosmos intradiegético. Seja em discotecas esquecidas, criadas através de computadores, seja numa ilha abandonada, invadida pela poesia da Natureza ou, ainda, numa viagem arqueológico-nostálgica pela História e pelo significado da tristeza, Jácome traça o vazio com palavras férteis — sejam elas faladas ou escritas —, comprimindo-as com precisão sob imagens fantasmagóricas e palimpsestos que deixam, no espectador, um gosto residual nectáreo.
Pretende-se traçar uma incursão por três obras de Jácome, tendo em conta vários casos de dualidade, ao mesmo tempo em que focar-nos-emos nos conceitos de “arquivo”, “arqueologia”, “documentário” ou “ficção científica” que são, na sua obra, desafiados pelo diálogo multidisciplinar onde História, música, Natureza e escombros co-existem.
Mergulhemos.
Na IV edição do Seminário Internacional de Cinema, que teve lugar em San Sebastián, em 2018, o ponto de partida era Toute le mémoire du monde (1956), filme ensaio de Alain Resnais, em colaboração com Chris Marker. Partindo dele, “botânica”, “natureza”, “memória-história”,“política”, ou “arquivo e património imaterial” foram alguns dos conceitos discutidos por convidados como os cineastas Jorge Jácome, Aya Koretzy e Helena Llanos, os músicos Ibon RG e Maria Arnal e o investigador, artista e produtor de som, Xabier Erkizia.
• É possível um arquivo, talvez inclassificável, sem dúvida não hegemónico, que tenha mais a ver com a experiência sensível, vital, natural e coletiva?
Esta é uma das perguntas que constam no programa do Seminário1 e que pretendemos explorar. Para tal, temos como objecto de estudo três curtas metragens de Jorge Jácome que, apesar de se inscreverem num registo ficcionado, acabam por ir ao encontro destas indagações no sentido em que reconfiguram o Espaço e o Tempo, contribuindo para um arquivo não-hegemónico de sentimentos que privilegia, assim, o multi-sensorial: as obras de Jácome são invadidas por cor, som, sobreposições, auras, onde somos guiados por voice-overs ou legendas que, por sua vez, reestruturam a memória e percorrem a História.
Fiesta Forever
Há uma temática comum interessante em alguns dos filmes do Seminário de Audiovisual Contemporâneo. A propósito de The Canyon, de Zachary Epcar, um colega referiu que o filme parecia um exercício direcionado a um alienígena que esbarrasse contra o planeta Terra, passando assim a conhecer uma ínfima parte do antropoceno que, pela sua mutação infindável, seria impossível de descrever.
Em Fiesta Forever, o “impossível de descrever” é uma noite passada na pista de dança. Nos escombros de discotecas abandonadas, conversas alheias pululam o ambiente decrépito e artificial. Num lugar de natureza indiscriminada, onde os clubs convivem sob a luz de uma lua imensa, Jorge Jácome é capaz de invocar a memória: usa, para o efeito, uma codificação advinda do documentário, mas inserida num cenário quase distópico: diálogos e histórias do quotidiano trocadas entre amigos são circunscritas num ambiente robotizado, numa maquete do real. Inesperadamente, este ecossistema tem um efeito muito mais potente: recria-se o suor dos corpos, as palavras clamorosas e a batida da música de uma maneira muito mais autêntica do que se de imagens ou mesmo sons destas acções se tratasse.
Nesta curta-metragem, beleza e catástrofe fundem-se, outra dicotomia comum na obra de Jácome. No espaço vazio, vozes cruzam-se em histórias e telefonemas; os escombros transformam-se em anéis, como os de Saturno; reconstrói-se aos poucos uma História mundana, de um Tempo que se afigura longínquo. E, assim, criam-se condições para um despertar de sensações não convencionais, experimentadas, especificamente, neste tipo de cinema. Neste “cinema sinestésico”, os sentimentos tomam conta do ecrã, fazendo com que a barreira entre documentário e ficção entre em confronto. É Gene Youngblood, no livro Expanded Cinema (1970), que põe este tipo de cinema numa linha transversal que abrange e ultrapassa, tanto de um lado como do outro, a Ficção, o Documentário e o Cinema Veritée.
“O fenómeno natural explicado pelo cinema sinestésico é a consciência do cineasta. É um documentário da percepção do artista. Como esta não é uma realidade física, tem de ser uma realidade metafísica, ou seja, um mito. Na aproximação deste intangível, a linguagem do artista é a realidade, não a ficção” (Youngblood, p. 106). Penso poder dizer-se que o cinema de Jácome entra na esfera daquilo que Youngblood aqui descreve como synaesthetic cinema, especialmente em relação às instâncias Realidade/ Ficção. Jácome não se cinge nem a uma, nem a outra — entra, antes, na área cinzenta que as une, neste “intangível” que as enfumaça. “Nunca me sinto confortável a fazer ‘ficção a sério’ (como gosto de a chamar… com actores, guiões, imitações da vida), mas também não tenho um background de documentário. Portanto uso o que sei, mais próximo do “real”. No final, são sempre possibilidades de um novo real” (Jácome, 2020).
Cumpre-se o arquivo inclassificável, vital e colectivo, da pergunta inicialmente colocada. Caso alienígenas invadissem a Terra (será o raio de luz que invade a curta metragem sinal disso?), teriam em Fiesta Forever um arquivo narrado de noites onde os corpos se tocam sem nunca mais se cruzarem. Caso saibam ler, terão nas paredes logradas ao abandono declarações de amor e desenhos falocêntricos que, inscritos na ficção, continuam a fazer parte da realidade.
Flores
Um dilema Herzogiano preenche o roxo de Flores: a população do Arquipélago dos Açores é obrigada a refugiar-se em Portugal Continental após uma “invasão” de hortênsias. Ao contrário de Fiesta Forever, Flores assume uma narração autodiegética. A voz de Jorge Jácome surge por entre a paisagem contaminada com o nevoeiro lilás, apresentando-se como personagem detentora de um objetivo: filmar as hortênsias e as consequências do seu crescimento desmedido.
Após o prelúdio explicativo, imbui-se o espectador na Memória de Andrade, um dos militares encarregados com a missão de vigiar São Miguel. Através de fotografias do seu arquivo pessoal, conta anedotas, relembra a família “refugiada” no Continente, com quem fala uma vez por semana, e apresenta o seu “camarada” e “grande amigo” Rosa.
Planos constritos, enquadramentos contidos (onde, por vezes, as hortênsias fazem de moldura), cortes inesperados que fazem lembrar a mudança súbita de apresentação num projector em carrossel, uma câmara instável de onde ressoa a voz de Jácome e onde a presença humana é constatada; problemas de som e testes de microfones que não são preteridos. Poder-se-ia tratar de um documentário, mas é a criação de um cenário quase fantástico, com cariz de ficção-científica. Num cenário vazio de gente, onde os únicos que restam são os militares e empresários que exploram as únicas duas actividades económicas possíveis, ambas relacionadas com as flores, o terreno demonstra-se fértil e congestionado — nada mais eficaz do que manter a tonalidade das invasoras para mergulharmos completamente nesta narrativa.
“- Estava a lembrar-me da nossa Q&A na Cinematek de Bruxelas onde tivemos de reforçar mais de quatro vezes que o que se vê no teu filme, Flores, não é necessariamente um documentário. Lembras-te?”
“- Sim, hahaha. As pessoas não querem acreditar.”
(Garbiñe Ortega e Jorge Jácome, 2020)
E é mais que normal, penso, que haja esta indagação. Os voice-overs em estilo National Geographic, a óbvia mas ténue história de amor entre Rosa e Andrade, a forma como a exploração das Ilhas é retratada. Há uma aura que, mais que calma, é gentil e meditativa fazendo de Flores um cine-poema. Traz ao de cima a sensibilidade, os sentidos, a vitalidade. A técnica documental sobre o véu da ficção tornam esta curta-metragem de Jácome num poço de ambiguidade, não só pela dúvida que suscita, mas pelos temas sobre os quais incide. Aqui, beleza e a destruição entram novamente na equação: como pode um fenómeno tão belo, transformar uma paisagem de maneira tão intensa?
A ficção de Flores poisa, gentilmente, questões que se ligam à ecologia, ao autoritarismo, à exploração e à globalização numa montagem onde o ritmo é lançado através de capítulos que exploram as diferentes dinâmicas que perduraram no Arquipélago. Porém, há algo maior que isso — o que perdura é, também, essa Memória , já arquivada, que continua a ressoar no torpor do lilás que, como disse Ricardo Gross na sua crítica sobre o filme: “não coincide com o tempo da recordação central do filme, para que o todo difuso se renove para futuras descobertas.” (Gross, 2018).
Past Perfect
“Because I know that time is always time
And place is always and only place
(And what is actual is actual only for one time
And only for one place.)”
— T. S. Eliot – Ash-Wednesday
(citação de abertura de Sans Soleil, de Chris Marker)
Será o Passado um espaço melhor do que o Presente, do que o Futuro? É sobre isto que se debruça Past Perfect, a curta-metragem mais ensaística de Jorge Jácome. Já no texto de Youngblood aparecia a noção de que existe uma crença generalizada de que a natureza é desordem e de que somos nós a ordená-la — no livro Expanded Cinema, Youngblood contraria esta tendência, reconhecendo o “novo cineasta” enquanto artista que procura provar que, na verdade, o caos é ordem noutro nível.
Em Past Perfect, o Caos/Ordem da História é escavado como se de um exercício arqueológico se tratasse. Uma aura visual toma conta do ecrã que se transforma numa espécie de caco de vidro partido, refletindo imagens duplicadas, sobrepostas. Nesgas de luz e imagem caleidoscópicas são projectadas. Aqui, som e imagem são igualmente importantes, tornando o mergulho mais intenso — se Fiesta Forever e Flores submerge-nos devagar, Past Perfect faz-nos entrar num mergulho que dispensa a propedêutica. Despidos de diálogo audível, tudo o que se ouve é um som hipnótico, precisamente como se estivéssemos numa câmara situada nas profundezas — do mar ou do Universo, tanto faz.
Mas, para além da ausência de som, há conversa. Adaptada da peça “Antes”, com texto e encenação de Pedro Penim, que retrata diálogos entre um tiranossaurus rex e o seu psicanalista, a curta-metragem lamenta o embotamento dos tempos de hoje — o vírus da Zika (ainda não havia o outro à data do filme), as notícias falsas, Jair Bolsonaro, o Error 404 —, empregando momentos de cultura pop e “erudita” no meio do seu “atlas de melancolias”2. A imagem tranquiliza, mas o som, por vezes, esbate o estado de espírito. A meio do filme, ouvimos uma canção quase alucinante, que nos põe em estado de transe. O diálogo vai-se traçando lentamente, explicando a razão das vozes em uníssono causar esta reação. Há, no entanto, algo que não permite entrar inteiramente na bolha; há uma sensação de angústia que se desperta e a legenda que aparece fura-a por completo. Ei-lo aqui, o belo e a destruição — Jorge Jácome escala o diálogo até ao murro, mostrando que também é mestre em puxar-nos o tapete.
Past Perfect é Arquivo de: melancolia, tristeza, saudade. É isto, também, Past Perfect. Percorremos momentos que marcaram a História do Universo através de um diálogo informal e despretensioso. Schiller, Walter Benjamin e o seu mais prezado pertence (o Angelus Novus), a canção de The Beatles. Os acontecimentos que deram origem à Primeira e à Segunda Guerra Mundial até 65 anos A.C.. Mas é, também, arquivo de: palavras e os seus significados (a Saudade não é exclusiva), de descrição exfrástica de um toque singelo.
É neste filme que reunimos a experiência sensível, vital, natural e coletiva que a pergunta do IV Seminário Internacional de Cinema colocava. Past Perfect, especialmente, perdura para além da sala exibida. É sim, possível, um arquivo não hegemónico que trate a história e a memória que ultrapassa género ou qualquer outra caixa onde o queiram por, ou seja, inclassificável.
*
Fiesta Forever, Flores e Past Perfect podem inserir-se na descrição que é feita d’O Angelus Novus: estes filmes continuarão presos na tempestade do progresso que os empurra para o futuro, ao mesmo tempo que olham para o passado, retratam, simultaneamente, catástrofe e belo, a extinção e a guerra.
Esfumando as fronteiras entre conceitos que têm vindo a ser desafiados desde o início da História do Cinema, Jorge Jácome acolhe a dualidade, o erro e o imperfeito, e as múltiplas maneiras de contar uma/A h/História, envolvendo nesse processo a sinestesia, uma pluralidade de meios e, ainda, diálogos e monólogos invulgares que, apesar de circunscritos, quase sempre, num nível de ficção, não deixam de espelhar a realidade.
Kenia Nunes
Bibliografia
Youngblood G. (1970). Expanded cinema ([1st ed.]). Dutton.
Webgrafia
Conversa fragmentada entre Jorge Jácome e Garbiñe Ortega sobre FIESTA FOREVER durante o Verão de 2020 (2020) in. VDrome.
[https://www.vdrome.org/jorge-jacome/]
Gross R. (15/10/2018). Flores (2017) de Jorge Jácome in. À Pala de Walsh [https://www.apaladewalsh.com/2018/10/flores-2017-de-jorge-jacome/]
Página de Antes, espetáculo de Pedro Penim (2017) in. Teatro Praga.
[http://teatropraga.com/shows/antes/]
PROYECTO Toda la memoria del mundo – IV SEMINARIO INTERNACIONAL DE CINE (2018) in. Tabakalera – Centro Internacional de Cultura Contemporânea.
[https://www.tabakalera.eus/es/toda-la-memoria-del-mundo/]
Filmografia
Epcar Z. (Realizador) (2021). The Canyon (Filme). Light Cone.
Jácome J (Realizador) :
✴ (2016). Fiesta Forever (Filme). Portugal Film
✴ (2017). Flores (Filme). Portugal Film
✴ (2019). Past Perfect (Filme). Portugal Film ✴ Resnais A. (1956). Toute la mémoire du monde (Filme). Les Films de la Pléiade