A secção Encounters/Encontros da 72ª edição da Berlinale foi inaugurada com Flux Gourmet do britânico Peter Strickland.
Nesta secção do festival exibem-se filmes peculiares, pedindo uma abertura por parte da audiência para as sugestões e ligações por vezes incomuns que surgem no ecrã. Flux Gourmet condensa estes aspectos e inicia assim o grupo de filmes a apresentar segundo este mote.
A narrativa segue um trio que se define como um colectivo artístico culinário, ao longo da realização de uma residência sob a tutoria de Jan, representante da instituição que os alberga. O objectivo seria habitarem em conjunto uma casa isolada durante um mês para se dedicarem à sua prática artística. As performances deste grupo, cujo nome permanece até ao final por decidir, combinam gestos culinários, como cortar e triturar legumes, com a criação de sonoridades experimentais a partir desses gestos. A interligação pouco expectável rompe categorias, quaisquer que elas sejam, não cabe em nenhuma, e por isso cria a sua própria: “catering sónico,” é desta forma que Elle (Fatma Mohamed), líder do grupo, Lamina (Ariane Labed) e Billy (Asa Butterfield) descrevem a sua atividade. Em palco, o delírio vai crescendo, as interações com a comida tornam-se progressivamente mais inusitadas, assim como os sons que as acompanham. Cria-se um ambiente de estranheza que parece fazer todo o sentido para a vida destas personagens. Mas também para o público a quem, no final do espetáculo, é permitida a entrada nos bastidores para o envolvimento sexual com o grupo artístico.
Ao mesmo tempo, as desavenças internas entre os três vão-se revelando e intensificando. Jan, com os seus discursos condescendentes e desejo de controlar o processo criativo, contribui para o aumento da tensão na casa. Tudo isto é registado pelo escritor Stones (Makis Papadimitriou), embora sem coragem para publicar os seus textos. Contratado para documentar a residência artística, Stones vai anotando o que observa e conduz entrevistas a cada um dos performers, o que nos permite entender um pouco dos seus passados e trajectos pessoais. Simultaneamente curioso e hesitante com as pessoas que têm diante de si, vai envolvendo-se nas suas dinâmicas. A sua principal preocupação torna-se tentar esconder os problemas gástricos que desenvolve. A sua indigestão vai piorando, mas Stones empenha-se com afinco para que ninguém perceba, e para que a sua flatulência permaneça despercebida, o que, como consequência, apenas piora o seu estado. Vai realizando exames acompanhado pelo médico da instituição, cujo humor sarcástico lhe confere um tom duvidoso. Stones, preocupado com a doença, mas não querendo, no entanto, revelar os seus efeitos, cria hábitos extremamente cuidadosos, como apenas usar a casa de banho partilhada quando já todos estão adormecidos. Contudo, inevitavelmente, o grupo percebe e Elle interessa-se pela situação e encontra aí o potencial artístico da autenticidade. Os exames médicos, incluindo uma colonoscopia, começam então a ser apropriados pelo colectivo e apresentados como performances.
Gwendoline Christie, Asa Butterfield, © Flux Gourmet, Bankside Films, IFC Productions I
Há um horror subtilmente tecido nas imagens de Flux Gourmet, memórias perturbadoras que atormentam as personagens, e se revelam através das suas dinâmicas disfuncionais. Todos parecem partilhar uma necessidade de purga, uma busca por catarse, como a certa altura confessa Lamina. É essa a característica que os une mas, perante tais inquietações, desentendimentos são inevitáveis e há um acumular de excessos que se torna incontrolável. Aquilo que era suposto ser um grupo coeso acaba por se desorientar a partir das suas rivalidades e divergências. Não deixa, contudo, de se notar o humor que Strickland imprime nestas situações absurdas. O realizador alia o cómico ao terror, o que é evidente, por exemplo, na história traumática que Elle partilha com Stones sobre uma pessoa importante da sua infância que, durante uma festa de aniversário, morreu de choque anafilático ao comer, sem perceber, um bolo de nozes. Na altura, as crianças que festejavam não entendiam a gravidade da situação, e apenas se riram perante o que achavam ser um espetáculo. O que é humorístico e o que é assustador nunca é claro.
Da mesma forma, as divisões entre espectador e intérprete são repensadas constantemente. Performance artística e vida dissolvem-se uma na outra. Os encontros sexuais entre performers e assistência, assim como a integração da doença de Stones enquanto espetáculo são prova disso mesmo. Não há linhas nítidas traçadas em lugar nenhum, e tudo se mistura como que colocado na liquidificadora utilizada nas atuações do colectivo. Assistir a Flux Gourmet é ser confrontado com desordem a todo o instante: a fisiologia do corpo humano e a vergonha em que este está envolvido; as estranhas tentativas de Stones de esconder as suas necessidades orgânicas; as performances culinárias que Elle pretende serem troças da subjugação das mulheres a cuidadoras da cozinha e do lar; os desentendimentos de um grupo que nunca se consegue organizar. Este é um filme de transgressões peculiares, e de levantamento de questões sem sequer procurar respostas.
Vera Barquero
[Foto de destaque: Ariane Labed, © Flux Gourmet, Bankside Films, IFC Productions I]