Basta-nos um verso – Io sono una forza del Passato – o primeiro verso de um poema de Pier Paolo Pasolini (quem não se lembra de Orson Welles em La Ricotta?), que empresta ao título esse mesmo verso para nos aquietarmos. E já vai longo o filme. E encontro outrora apenas imaginário tornou-se real. Inspirado no poema de Pasolini, À Vendredi, Robinson da realizadora iraniana Mitra Farahani não precisa de ser mais do que isso e, no entanto, tamanha é a grandiosidade de ser só isso – um encontro à sexta-feira entre Jean-Luc Godard e Ebrahim Golestan.
Godard dispensa apresentações. Porquê? Porque é Godard.
Golestan, figura literária e realizador iraniano, parou de fazer cinema quando deixou o Irão, nos anos setenta, concentrando-se, desde então, na escrita. The Secrets of the Treasure of the Jinn Valley (1974) seria o seu último filme, a que apenas precedia Brick and Mirror (1965) e algumas curtas-metragens documentais. Deve à poeta iraniana Forough Farrokhzad, por quem foi apaixonado, o impulso para a procura da sua expressão artística, que o viria a tornar um realizador pioneiro do cinema iraniano. Dela, Golestan ainda guarda em casa a película do único filme que realizou, This is a Black House.
Mitra Farahadi partilha com Golestan a língua, a cultura, o país de origem, mas é da sua relação com a imagem e a palavra, o cinema portanto, que surge À Vendredi, Robinson, e do amor à tradição – Solo nella tradizione è il mio amore (My love lies only in tradition) – que se concretiza o imaginado encontro entre os dois realizadores.
“O filme cria o encontro. O filme tem de criar o encontro.”, diz-nos Farahadi, o filme é ele mesmo o encontro, dizemos nós. Sem ele, Godard e Golestan nunca pertenceriam ao mesmo intervalo espácio-temporal, sem ele nunca seria sexta-feira. E é necessário que seja a sexta-feira, o dia da chegada da correspondência, ora por email, ora por correio, que eles devem trocar entre si. E precisamente nessa correspondência – Farahadi questiona-se se não será, na verdade, uma não correspondência – reside o sujeito do filme, o embate entre duas linguagens radicalmente diferentes e a resistência por elas desencadeada, sobretudo em Golestan.
Para Godard, “spoken language is not language”, como se ouve no filme, e cada email seu é prova disso, contendo sempre pelo menos uma imagem, por vezes um vídeo, sempre um poema (de algibeira) e alguns aforismos, cujo propósito, sentido ou relação permanece um mistério. É nesse mistério que se detém e adensa a resistência de Golestan, de quem nem sempre conhecemos as respostas, enviadas não por email, mas por carta. O que nos é dado a ver por Farahadi é sobretudo o exercício golestaniano de descodificação da linguagem godardiana.
Alternando entre a espantosa casa medieval de Golestan, no Reino Unido, e a modesta casa de Godard, na Suíça, a câmara de Faharadi vai-se delicadamente adentrando no espaço doméstico de cada um, sem se prender a um retrato do seu quotidiano (embora não haja nada mais maravilhoso do que ver Godard dobrar a roupa enquanto segura um charuto com a boca – um clássico podemos dizer). O que interessa a Faharadi não é tanto conhecer os hábitos dos realizadores como mostrar o quotidiano do seu pensamento, expressão cunhada pela própria, e a partir dele depararmo-nos, espantarmo-nos, comovermo-nos mais uma vez diante da grandeza e da riqueza das suas obras. E de Beethoven, Goya, Dürer, Saadi, Cherubini, Nicholas Ray, e outros, que constituem a matéria-prima desse quotidiano.
Eis-nos de volta ao início e à primeira pergunta, e talvez derradeira pergunta, do filme – De que serve ser um poeta (leia-se também realizador, músico, enfim, artista) em tempo(s) de sofrimento? – a única resposta possível é ver o filme de Farahadi,
À Vendredi, Robinson.
Cátia Rodrigues
[Foto de destaque: Ebrahim Golestan, Jean-Luc Godard, À vendredi, Robinson, © écran noir productions]