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Um Punhado de Ideias: Giù la testa e a “Trilogia do Tempo”

O cinema de Sergio Leone é amplamente conhecido pelo modo como se inscreve através do tempo: estrutura épica e reminiscências de tragédia grega – paradigma ao qual Leone puxa o tapete – extraindo desse berço, o muito seu spaghetti western. Por vezes podem vislumbrar-se traços de epopeia clássica, que retorna, transferida do mediterrâneo, para uma América nova e selvagem, na qual se assiste ao despontar de uma civilização industrializada, e da qual, entre outras coisas, é característica uma sensação iminente de “poda”: de uma triagem civilizacional, representada através de alguns personagens.

Estas eclosões sociais, estão longe de ser o centro do cinema de Leone, embora  o situem inequivocamente no espaço e no tempo. Com efeito, estas mudanças reverberam desde o exterior do ecrã, no próprio milieu do cinema, no qual, iluminado por John Ford (sobretudo mas não só), o realizador italiano cunhou a sua marca indelével. Leone empreende uma série de alegorias a uma América do cinema, emblemática, entre outros, pelos seus  westerns e noirs que revive, onde se encontram pelo menos duas mitologias que lhe são matriz — a da literatura clássica e a do cinema. Nesse sentido o seu cinema é um cinema de símbolos, no qual, o maior referente é o entendimento dos mesmos através de um olhar cinéfilo do realizador enquanto espectador. Talvez se possa dizer que a América de Leone é a América dos filmes de Ford e de Peckinpah (entre outros, poucos) bem como, de todas as conversas cinéfilas com os seus amigos e compagnons de route, que  invariavelmente desaguaram no cinema que quis dar a ver. E que cinema será esse no caso de Sérgio Leone? Qualquer que ele seja, é em grande parte protagonizado pelas pétalas da amizade e seus espinhos.

Once upon a time in the West, Sergio Leone ​​© Direitos reservados

Nas duas famosas trilogias de Leone, as referências clássicas são subtilmente evidentes. Na trilogia do Man with No Name podemos perscrutar as aventuras de Odisseu (lembremo-nos da célebre resposta do herói grego ao ciclope Polifemo: “Ninguém é como me chamo”) no périplo de tensões entre vício e virtude que perfilam na também conhecida como Trilogia dos Dólares – esse deus, por quem se mata, vinga e conquista movendo mundos – entre estratégia e delírio, entre a honra e a vileza dos bons, dos maus e dos vilões. Da mesma forma, na trilogia Once upon a time (Once upon a Time in the West de 1968, Giù la testa de 1971 e Once upon a Time in America de 1984) esta ambiguidade – característica suprema da mundanidade de Odisseu – manifesta-se na combinação de astúcia e manha, de génio e vaidade – ou, nas palavras de Camões, de “engenho e arte” – em maior ou menor grau, nos vários protagonistas de Leone.  Curiosamente, se isolarmos a última parte de cada um dos títulos desta trilogia, obtemos a sequência – West, Revolution, America – a partir da qual já se pode intuir uma narrativa, uma relação cronológica com o mito da land of opportunity, retratada a partir de uma “homenagem ao [género] Western, que ao mesmo tempo mostra as mutações que ocorriam na sociedade americana daquela época”. No sentido do termo inglês longing, que nos remete para uma ideia de distância até ao que se deseja (e nesse sentido, uma ideia de tempo) esta justaposição avança a paisagem temporal de Leone. De uma mitologia do cinema americano, desde o último reduto de uma era – o velho oeste (wildwest) – dissolvida numa civilização nova, tecnológica e industrializada, mas que regurgita as velhas formas de banditismo, juntamente com a discrepância entre classes, problemas sociais e, naturalmente, a ambiguidade dos heróis (algo bastante visível sobretudo no caso de America e Revolution/Giù la testa). Há um aspeto distinto em relação à trilogia do “homem sem nome”: a recorrência de flashbacks, que (re)constroem uma narrativa em paralelo com o passado (ampla em America) e que se pode traduzir numa representação da força motriz da vingança, que em cada caso, encontra diluição ou acirramento nas motivações dos protagonistas.

Esse contexto com o passado, evoca também a possibilidade de novos começos, ou talvez a consciência de viver novamente, de uma nova vida ou vida dupla, como é o caso em Revolution (Giù la testa). O filme abre com uma frase de Mao Tse-Tung: 

“A revolução não é um jantar social; um evento literário; um desenho ou um bordado; Não pode ser levada a cabo com elegância e cortesia. A revolução é um acto de violência.”

Na cena inicial – uma espécie de prólogo de reminiscências burlescas – assiste-se a uma hierarquia de atos de prepotente vileza in a nutshell (sendo esta “casca” a própria diligência): num formigueiro azafamado, cai um jorro de mijo devastador, precipitado desde a braguilha de um vagabundo, que, momentos depois, implora por boleia, numa diligência que atravessa o deserto escaldante. Imediatamente é enxotado pelo guarda armado do condutor, que o examina de alto a baixo com o mais puro desdém, até mudar de ideias, considerando o regozijo de causar uma mútua inconveniência aos passageiros de alta sociedade, somando-lhes aquela figura andrajosa. Por sua vez, dentro da carruagem, o viajante é coberto de opróbrio e escárnio pelos restantes, que não coíbem o impudor dos comentários discriminatórios, enquanto o observam, qual espécime exótico. Momentos volvidos entre os grandes planos das bocarras maledicentes e mastigadoras que chupam e cospem ossos e caroços, a sorte é redistribuída, ou, por outras palavras, o viajante come-os a todos de cebolada, numa coreografia vil e crua, que para além das mortes envolve uma violação.

Giù la Testa, Sergio Leone ​​© Direitos reservados

Esquematizam-se rapidamente os traços gerais das personagens do filme, de forma plural: as classes sociais e suas discrepâncias económicas, o despudor e a baixeza em direção ao povo, e o ódio que num mesmo nível flui entre elas. Revolution (Giù la testa) estrutura-se a partir de um encontro casual de dois (anti)heróis (Leone habituou-nos bem a ver o protagonismo repartido em mais do que um elemento) que a princípio, em comum, têm a fuga (o caminho errante): um foge do passado, o outro do futuro. O encontro entre os dois é um explosivo de longo rastilho.

Sean (James Coburn), que no encontro insólito com Juan é baptizado como seu homónimo – “John” – é perseguido pelo passado. Surge de uma nuvem de pó, de onde se poderia esperar um cowboy mas… nem cavalo, nem revólver, nem chapéu… apenas um viajante, equipado dos pés à cabeça contra a poeira do deserto, vindo de um futuro qualquer, em cima de uma Harley-Davidson, e levantando sobre o bando de Juan um autêntico marasmo. Quem é este gringo? Estará perdido, certamente. E parece que procura perder-se para sempre! No entanto encontra Juan (Rod Steiger), um líder histriónico de uma quadrilha e pai de família (que por acaso, é o mesmo grupo). 

Giù la Testa, Sergio Leone ​​© Direitos reservados

Neste momento proponho estabelecer um díptico: uma relação retrospectiva entre Revolution e o filme La Double Vie de Véronique (1991) de Krzysztof Kieślowski, a partir da qual se pode repensar sobre o modo peculiar como Leone nos fala sobre (e com) o tempo.  O filme de Kieślowski evoca a noção de duplo, de universo paralelo. No seu livro Lacrimae Rerum, Slavoj Žižek estabelece em La Double Vie de Véronique, uma relação apolíneo/dionisíaco entre as personagens Weronika e Véronique: 

“Se a personagem polaca, que marca a primeira parte do filme, é mais emotiva e ingénua, cede às tentações e age sobre os impulsos, ou seja, é a versão dionisíaca, a personagem francesa, que aparece na segunda parte do filme, é mais racional, contemplativa e cuidadosa, como uma versão apolínea.”

Once upon a time the Revolution (Giù la testa), também pode ser visto sobre esta noção de duplo. Ou seja, “a noção de duplo, de «flashback no presente», [e] (…) em última análise a escolha entre «vida calma» e «missão»”. Žižek indica que “[o] papel do acaso e das histórias alternativas paralelas deve ser entendido como outra tentativa de expressar a nova experiência de vida no velho meio de expressão cinematográfico que fomenta a narrativa linear”. Ora no cinema de Leone, a narrativa é maioritariamente linear, mas a trilogia Once Upon a Time (a que gosto de me referir como “Trilogia do Tempo”), é construída através de flashbacks, i.e. reconstruída, restaurada, do ponto de vista mnésico. Particularmente em Once Upon a Time in America atinge uma sugestão quase onírica, e em Revolution (Giù la testa), pede que construamos a partir de uma misteriosa coincidência, estranhamente familiar. Não se trata de perceber se é uma vida ou a outra, mas de reconhecer a repetição da vida sobre um ponto de vista trágico que encapsula a pulsão vital, a liberdade, o amor, a guerra, a morte e a vingança. Leone fornece uma série de “pistas” com que se vai construindo tudo isto à volta da odisseia dos falsos homónimos, algo que rima com a construção de Kieślowski em La Double Vie de Véronique: “uma sucessão de pistas abstractas, não para chegar a uma conclusão lógica, mas antes a um mapa emocional – só que acaba sempre por voltar à necessidade de uma narrativa base. Essas pistas, gestos e sons, objectos e imagens, permitem, no entanto, um prenúncio de uma ideia de filme-poema, sensorial”.

Giù la Testa, Sergio Leone ​​© Direitos reservados

Note-se a diferença entre a construção de La Double Vie de Véronique, apontada por Slavoj Žižek como feita a partir de “uma e a mesma Verónica que viaja para trás e para a frente no tempo”, e em Revolution (Giù La Testa), a partir de dois personagens nitidamente distintos, que nem sequer têm mesmo o mesmo nome, porém, têm-no, na relação que se constrói entre os dois. Tendo em mente o conceito de impossibilidade cósmica (o encontro de uma pessoa consigo mesma) do encontro entre Véronique e Weronika, podemos conceber que entre Juan e John, se propõe uma relação potencialmente explosiva. Não são a mesma pessoa, mas não serão imbuídos de emoções semelhantes, modificadas apenas por uma questão de tempo e espaço? John recusa a proposta de Juan, porque vê nele o seu passado, e nesse momento foge dele sem olhar para trás. Juan vê em John um homem de ação, ideal para pôr em prática o seu plano, mas não pode ainda compreender que o pragmatismo deste vem de não ter já nada a perder. Entretanto, sem que se aperceba, ele próprio é usado como homem de ação no plano de John. O passado de John (Sean) é o futuro de Juan. São o duplo um do outro numa questão de tempo. Os dois são homens de ação, mas de ações diferentes. Trinta anos antes de Krzysztof Kieślowski, a construção do tempo na linearidade narrativa desta trilogia de Leone, tem a particularidade de existir para ser digerida se se quiser. Pois não há nada que relacione os corpos e o tempo como as cicatrizes ou as feridas por sarar, algo comum a todos os personagens de Leone. Neste caso, a grande ferida de John é o passado, e a de Juan reside no futuro, no momento do encontro entre ambos. O silêncio agudo que caracteriza John e que contrasta com o relambório alardeado de Juan, parece conter, de uma forma inacessível, o conhecimento prévio dessa ferida que se vai abrir em Juan. Talvez, por isso, não esteja para grandes conversas. Ambos parecem anular-se no presente – essa linha ténue que separa o que já não existe do que ainda não existe. É de notar a presença do silêncio, visual e verbal, em Revolution (Giù la Testa). Há algo de slow cinema na sua composição, do ponto de vista da imagem em que a inércia homogénea contrasta com a ação física demarcada, e no campo sonoro, a trilha composta por Ennio Morricone é marcada por retumbantes explosões prolongadas no eco. Tendo em conta toda a extensão do filme, a presença verbal é menor – à exceção de alguns diálogos indispensáveis à narrativa (particularmente nos diferentes pontos de vista sobre a revolução) – o que torna Giù la testa um filme particular, mesmo dentro do universo de Leone e até desta “Trilogia do Tempo”. A sua digestão é feita de espaços vazios e do preenchimento desses espaços: os zoom-in abruptos que enchem o plano com um esgar, a contemplação da canícula na paisagem, os movimentos mudos dos corpos nos scherzi de Morricone, e a redundância truculenta das rajadas de metralhadora com pitadas de nitroglicerina.

Se dividirmos o filme em três partes, em que a primeira é a apresentação mútua de Juan e John, a segunda é a “revelação” de Juan, e a terceira a redenção de John, podemos pensar nas duas personagens como uma mesma identidade, partilhada e cíclica. Temos presente esta dualidade entre a «vida calma» e a «missão» de que nos fala Žižek. Mas quem é quem? Será que Juan quer a vida calma, longe do calor da revolução, feito um último golpe, ou será esse golpe a missão? E John, que parece rejeitar qualquer missão, terá visto em Juan uma forma útil e necessária de pôr a revolução a andar? Ou teria já planeado conduzir a revolução através deste ingénuo amigo, cujas intenções estavam longe da glória do heroísmo, tornando-o por isso no mais autêntico homem, capaz de ser orquestrado?

No livro de Christopher Frayling, “Spaghetti Westerns”, pode ler-se um comentário de Sergio Leone sobre a revolução enquanto tema retratado pelo cinema de Hollywood: “A revolução mexicana no filme é meramente um símbolo e não a revolução, que apenas interessa neste contexto pela sua fama e relação com o cinema [em particular o género western]. É um mito real. Para evitar equívocos, rejeitei o “romance do sombrero” e preferi lidar com o tema da amizade, que me é tão querido”.

Os flashbacks de John, reconstroem, evidentemente, o motivo de o encontrarmos agora no deserto do México. Mas a frequência com que surgem, parece dizer-nos algo muito complexo sobre a sua figura: este gringo empoeirado com o duster mais volátil do México, viveu outrora sobre um olhar romântico. Vemos o seu brilho e as particularidades dos dias distantes que, gradualmente, vão sendo entregues: três amigos felizes, que se olham e sorriem como se projetassem o que estão a ver para o resto da vida. Por outro lado, as características visuais do cenário do passado, são opostas ao deserto vazio e árido do presente. Nesse passeio, pode sentir-se a brisa gelada de uma soalheira tarde de inverno e a frescura das folhagens que rodeiam a travessia do descapotável. Poder-se-á dizer que John (Sean) regressa ao passado para encontrar o seu duplo (Juan), que terá de forçar a liderar a revolução, nem que para isso o tenha de ludibriar, usando como vantagem, o último grande golpe – o “golpe de uma vida”: o banco Mesa Verde – que Juan pretende dar. Por outro lado, no que aqui se considera a segunda parte do filme, esvai-se o espírito ladino de Juan… desvanece o seu olhar matreiro, debaixo daquela gruta tornada jazigo. Resta apenas a Revolução! 

Também aqui podemos refletir a partir da ideia de duplo em Krzysztof Kieślowski: quando John cumpre o seu papel, fecha o seu ciclo e assistimos ao flashback final desse reenquadramento do passado que está a ser feito (recordando-nos da lição de Juan: “My country is me and my family… Please don’t try to tell me about the revolution, I know all about the revolution: The people who read the books go to the people who don’t read the books, the poor people and say: HO-HO! The time has come to have a change! So the poor people make the change and then the people who read the books they all sittin’ around the big polished tables and they talk and talk and talk and eat and eat and eat, but what has happened to the poor people? Their dead!”). John morreu quando foi obrigado a matar o seu melhor amigo, traidor da causa. Juan morreu quando encontrou os corpos empilhados da sua família. Mas não há lugar para dois Johns, sobretudo depois de não haver “escolha”:  a “missão” está feita.Em West a dupla vida surge de uma vingança, em Revolution, da fuga/ desaparecimento, e em America de uma reconstrução/ reencontro. 

Os flashbacks vão construindo essa base, através da qual se verifica uma repetição e neste ponto o elo amistoso do protagonista, constrói-se num quadro peculiar: o triângulo amoroso (um pouco como em America) – estes amigos não eram só amigos, ou apenas amantes… eram a vida! – E a vida acaba quando essa amizade é derrubada pela baixeza terrena da traição, da vingança (poder-se-á pensar que a traição oscila entre a vida amorosa e a causa). Estes blocos do passado são os alicerces do gesto de recordar, de reenquadrar, através da história de uma amizade antiga, que já não existe no momento em que o espectador a pressente. 

Giù la Testa, Sergio Leone ​​© Direitos reservados

Em Giù la Testa, estes laços chegam-nos pela recordação de um passeio idílico que se vai prolongando, revelando-se gradualmente ao longo do filme, como numa restituição da memória de John — ou da única coisa que lhe interessa recordar. É possível intuir uma outra camada sobre a personagem de John, que diz respeito ao amor, e um possível (vai-se revelando) trio amoroso (dois amigos e a revolução). Esta sugestão triangular, acontece de forma distinta nos três épicos da trilogia do Tempo (Once upon a time). De forma indireta em West, entre Harmonica (Charles Bronson), Cheyenne (Jason Robards) e Jill (Claudia Cardinale), e em America, entre Noodles (Robert De Niro / Scott Tiler), Max (James Woods/Rusty Jacobs), e Deborah (Elizabeth McGovern/ Jennifer Connely), que nos permite pensar que até — e sobretudo (aliás, haverá maneira melhor de dizer que estes personagens estão “estragados” como indicar a sua incapacidade de amar?) — no amor os nossos heróis estão acometidos de improbabilidades, de assimetrias, de ilusão e de dependência. 

Once upon a time in America, Sergio Leone ​​© Direitos reservados

De facto, o cinema de Leone, e sobretudo nesta trilogia West, Revolution e America, o tempo é um elemento central. Os dez anos a que Odisseu se sentencia involuntariamente existem no destino de Juan, no seu desprezo pelos “gigantes” das classes altas, e pelos seus moralismos e ideais de tirania e de controlo do povo, bem como existem no passado de John, nos dias de luta pela causa, no IRA

Existem também, de uma outra forma, em West, quando Jill chega à cidade, para encontrar morta toda a sua nova família, dando-se conta que acaba de chegar a lugar nenhum. No caso de Cheyenne, parece encontrar-se na procura moral ética de um marginal. Harmonica, por sua vez, carrega o peso de uma vingança, que se vai gradualmente revelando em flashbacks, a partir dos quais podemos construir a sua personagem, mais árida e silenciosa que o próprio deserto. A vingança parece a condição da sua própria existência: uma vez consumada, não haverá razões para existir em nenhum lugar. Nem mesmo Jill, que depois de continuar o projeto do seu defunto marido, parece ter “tudo”, continua a não ter aquilo pelo qual mudou a sua vida: uma família. 

Once upon a time in America, Sergio Leone ​​© Direitos reservados

Em America, esta reconstrução do tempo feita construção do herói, assume características sui generis que se podem comparar com as de Giù la testa. Once upon a time in America é também um não-filme de gangsters, que fala sobre o tempo e que se constrói em busca de um tempo perdido e dos jardins obscuros da juventude, dentro dos quais Noodles (Robert De Niro) procura reencontrar as pontas soltas do seu passado — um passado que se reconstrói aos nossos olhos. Entre fragmentos de memória coletadas num sonho de ópio, relatos e reencontros de velhos amigos, que a custo, vão dando respostas ou indicando as perguntas. Tal como Odisseu, Noodles regressa a casa na pele de um velho, procurando saber o que é feito da sua Penélope, encontrando resquícios de pequenas peças-chave, perdidas, que outrora semeou. Também aqui, como em Revolution (Giù la testa), o papel do trio amoroso caracteriza o caminho de cada um dos heróis, onde não há bons nem maus, apenas pessoas em fuga ou que ainda tentam construir as paredes das suas “prisões”. Ambos se entregam à perdição. 

Once upon a time in the West, Sergio Leone ​​© Direitos reservados

O cinema de Sergio Leone será sempre, nos círculos mais populares (a quem Leone via como o seu público), o cinema do western. Não me refiro ao género, mas ao universo do “italiano que inventou a América” contando histórias sobre a amizade, sobre a vida, sobre envelhecer e sobre cinema. E seguramente, sobre como tudo isso nos aproxima e nos pertence.

Leia-se este excerto do livro de Christopher Frayling Spaghetti Westerns: Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone que inclui uma citação de Sergio Leone sobre cinema e política, a ter em conta à luz da atualidade:

“Sergio Leone (que claramente está menos empenhado na ideia de um cinema político do que [Bernardo] Bertolucci e cuja tentativa de satirizar os [western] spaghetti políticos em Aguenta-te, Canalha [Giù la testa]) manifesta no entanto, uma posição análoga vis-a-vis com o cinema popular. Vimos como [Leone] recusa rotular os seus filmes como “políticos”, num sentido formal (especialmente a trilogia dos “Dólares”), bem como não deseja ser destacado enquanto especialista em matérias políticas. Porém [Leone] tinha fortes pontos de vista sobre o que designa enquanto “triste paradoxo”, no qual o cinema político dos anos sessenta era baseado: Creio que o senhor Chaplin fez mais pelo socialismo há quarenta anos atrás do que fez Togliatti aqui em Itália. O meu amigo Francesco Rosi só faz filmes políticos. Tem uma centena de espectadores que vêm ver os seus filmes, falar sobre eles e é tudo. Estes espectadores já estão a par do problema. Eu, por outro lado, acredito que devemos injetar os problemas políticos de hoje no espetáculo do povo… a política não já não faz qualquer sentido em Itália! É por isso que eu faço os filmes que faço. Nós acreditamos na espécie humana e a espécie humana deixou-nos mal. Claro, a situação é idêntica noutros países, mas por algum motivo o nosso é o menos afortunado. A nossa hipocrisia e a nossa “política de compromisso” contribuíram para uma crise. Enquanto intelectuais, resignámo-nos, cansados da batalha. Em que podemos nós pensar senão na morte? Após vinte anos de fascismo, vamos enfrentá-lo novamente. Haverá coisa mais inacreditável no mundo? Somos o único país do mundo a viver este absurdo. Eles vão vencer e nós agimos como o homem que corta os tomates para castigar a sua mulher. É pura loucura! Dada esta situação, vou tentar criar fábulas, épicos. O nosso cinema, afinal de conta, é demasiado nacional; o seu significado pode apenas ser apreciado em Itália. Isso não me interessa tanto.”

Sebastião Casanova

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