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Distopia Contemporânea em The Myanmar Diaries

Em plena pandemia de Covid-19, um vídeo percorreu a internet e se tornou viral. Tratava-se de uma professora de dança fazendo um vídeo para uma plataforma da internet enquanto grupos militares tomavam as ruas de Myanmar para anunciar um golpe de estado. É exatamente com essa mesma imagem que The Myanmar Diaries começa, um filme exibido na secção Panorama.

Nietzsche afirmou que apenas acreditaria em um deus que soubesse dançar. Neste filme urgente, vemos almas desesperadas prontas pelo anúncio de uma nova realidade. 

Realizado por cineastas anônimos do Myanmar Film Collective, a obra existe graças ao Netherland Funds, famoso por procurar financiar artistas em situações políticas adversas, como é o caso do país asiático. Anonimamente, diversos estudantes de cinema participaram do longa metragem, organizado de maneira episódica, cuja pós-produção foi organizada internacionalmente. É uma oportunidade para qualquer espectador que deseja conhecer mais da situação atual, extremamente bárbara, da população birmanesa.

Diversos curta-metragens compõem um cenário distópico, em que militares anunciam toque de recolher, disfarçam-se de civis e atacam manifestantes covardemente pelas ruas. A montagem também inclui vídeos de celulares, documentários e histórias de ficção. O resultado é um mosaico amplo e fragmentado de um país em estado de decomposição. Um apelo à comunidade internacional que preste mais atenção, que forneça qualquer tipo de auxílio à comunidade que vive sobre um regime de terror no qual pouca informação pode escapar. As diferentes maneiras de filmar criam texturas diversas e uma paleta multifacetada de vozes, emoções e criatividade.

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Os diferentes relatos acabam por criar muitas texturas na tela do longa – © The Myanmar Film Collective

Nenhum rosto aparece nas ficções de The Myanmar Diaries. Vemos partes dos corpos, os atores de costas, ou suas caras borradas. Num dos curtas, uma menina menor de idade precisa contar ao namorado que está grávida. É uma situação delicada, pois o pai da criança é procurado pelo governo. Em outro, um homem é atormentado por fantasmas que morreram assassinados pelas mãos dos militares. Também se destaca o relato autobiográfico de uma cineasta que precisou fugir do país, deixando família e amigos em troca de segurança, não sendo entretanto abandonada pelos sentimentos de culpa.

O mais emocionante dos relatos acompanha o treinamento diário de grupos revolucionários do Movimento de Desobediência Civil. A rotina dura é análoga aos dos filmes que seguem a jornada do herói, no momento em que os protagonistas precisam se preparar para grandes batalhas. A diferença aqui é que a batalha é real e está acontecendo nesse exato momento. Cifras nacionais e internacionais discordam entre os números e há mesmo hoje sites na internet que anunciam mais de 10.000 cidadãos mortos pelo cruel regime. A fala final do filme é dilacerante: “Alguém nos escutará?”. 

O vermelho-sangue é quase onipresente. Imagens documentais frequentemente são interrompidas por agentes da polícia que ordenam aos que filmam que interrompam sua atividade naquele mesmo instante. Os dramas pessoais daqueles que precisam enfrentar o cotidiano perverso instaurado pelas tropas giram em torno do equilíbrio complicado entre as lutas, as manifestações, as greves e a família. É impossível sair desse filme sem empatizar-se com a luta dos bravos homens e mulheres do Movimento de Desobediência Civil.

Chico Barbosa

[Foto em destaque: Jovem representanta o clima asfixiante da ditadura birmanesa em curta no qual não pode sequer revelar o próprio rosto – © The Myanmar Film Collective]