A crise de refugiados que se vive atualmente na Europa é uma declinação menos silenciosa que a que se vive há décadas em grande parte das regiões do mundo. Sendo o silêncio a marca da distância e da abstração, a proximidade geográfica da crise e seus efeitos traz à presença e expõe a fragilidade da interpretação dos fundamentos sociais e humanistas que estão no cerne da civilização ocidental, da qual a União Europeia se destaca como a tentativa pós-moderna de realização política. O que mais surpreende, embora – cinicamente – não muito, tem que ver com uma outra variação da relação com a proximidade. A par da proximidade de tipo espacial, tornou-se novamente evidente que esses fundamentos servem um propósito político-temporal, reservados a preservar uma demarcação histórica daqueles que produzem reconhecimento na sua alteridade, como a diferença na resposta às crises humanitárias resultantes da invasão da Ucrânia e da Primavera Árabe tão bem ilustram. O Outro, cuja diferença não pode ser encerrada nos limites do Mesmo, continua alvo de rejeição, discriminação, estigmatização, … enfim, continua um estrangeiro na sua nova terra.
São muitos e importantes os filmes que se têm debruçado sobre este problema social e político. Eles mostram desde a guerra e seus efeitos locais até ao ciclo de desespero que marca os movimentos precários de fuga e processamento em condições desumanas até à legalização por países de destino, tudo aturadamente mastigado por uma máquina burocrática hostil, despersonalizada e despersonalizante.
No último ano, dois filmes acrescentaram a estas representações uma nova dimensão, que o cinema, até então, tinha ignorado ou esquecido – a educação, nomeadamente a das crianças refugiadas. Falamos do belíssimo documentário O Professor Bachmann e a sua turma, da realizadora alemã Maria Speth, e do mais recente Éclaireuses, de Lydie Wisshaupt-Claudel, filme em estreia na Competição Internacional do festival de cinema Visions du Réel, a decorrer até ao dia 17 de Abril. Comum aos dois filmes, uma questão: Como podem as instituições escolares constituir-se como um espaço de integração, segurança e aprendizagem para estas crianças, e não de opressão e discriminação, como parece ser o caso?
La Petite École, a escola ‘pequena’ que Marie e Juliette abriram no coração de Bruxelas, depois de abandonarem o ensino clássico, apresenta-se como um “laboratório de investigação”, nas palavras das mesmas, pretendendo ser uma possível resposta a essa pergunta. Criada para acolher crianças, entre os 6 e os 15 anos, que nunca estiveram na escola, grande parte das quais oriundas de famílias exiladas, sobretudo da Síria, esta escola é um lugar de transição para as escolas do sistema público. Com métodos pouco ou nada convencionais, preferencialmente de carácter imersivo, aqui encontra-se um espaço de aprendizagem que visa apoiar individualmente cada criança, integrando-as numa comunidade “escolar” que privilegia a confiança e segurança, dois elementos essenciais e indispensáveis à luz das experiências traumáticas por que passaram.
Documentário de estilo observacional, tal como o filme de Maria Speth, a lembrar o cinema de Frederick Wiseman, também ele, como se sabe, centrado em instituições sociais, Éclaireuses é um filme tão luminoso quanto o é o projecto do qual trata. Nele, mostra-se e descobre-se a possibilidade de confrontarmos e de interrogarmos a distância que se interpõe entre nós enquanto sociedade e estas crianças e a desatenção face ao perpetuar da discriminação e segregação, do qual as nossas instituições sociais também são responsáveis. O gesto inaugural de questionamento – qual o sentido da educação e qual o papel que a escola, na forma institucional e tradicional, nela desempenha – do qual nasce La Petite École, ecoa em cada momento de reflexão pedagógica entre as duas professoras e entre elas e os grupos de investigação e outros responsáveis e docentes, que no filme se intercalam com imagens dos dias passados na ‘pequena’ escola. Entre o modo e o estilo observacional com que são filmados esses dias e o método de ensino que neles é adoptado e praticado, dá-se um verdadeiro encontro. A organização do tempo e do dia não apenas reúne as diferentes cadências de cada uma das crianças, como também rege a presença da câmara no espaço, dando corpo a uma unidade rítmica entre diferentes estruturas temporais. Ao invés de ser imposto pelo fazer do filme e pela presença da câmara, o ritmo que aproxima escola e filme inscreve-se lentamente no intervalo espácio-temporal em que ambos se fundem. A verdade é que, inicialmente, Lydie Wisshaupt-Claudel fora proibida de entrar e filmar a escola, tendo sido necessários vários encontros, debates e ensaios entre ela e as professoras sobre as possibilidades e formas de filmar para fazer nascer a vontade de realizar o filme. Não reconhecemos neste processo também o processo que deu origem e dá sentido à La Petite École – debater, reflectir, pôr em prática?
Considerada uma “falsa” escola, desvalorizada naquilo que é capaz e que representa para as crianças que acolhe, não será La Petite École, a par do método de ensino holístico e em nada semelhante ao método vigente do Professor Bachmann, o início de um futuro na educação? Da angústia para qual somos inevitavelmente atirados ao ver Éclaireuses, com ele nasce também a esperança de que se torne presente esse tão luminoso futuro e a vontade de fazer parte dele, de tornar o projecto de Marie e Juliette o projecto de todos nós.
[Foto em destaque: Juliette Pirlet em Éclaireuses ©Éclaireuses]