Mais um filme a ser apresentado na Competição Nacional do IndieLisboa. Paulo Carneiro abandona Trás-os-Montes, onde filmou Bostofrio, em 2019, para captar a opinião de emigrantes portugueses fãs do tuning, na Suíça, em Périphérique Nord. Apresenta também o projecto A Savana e a Montanha, na secção Lisbon Screenings (a decorrer online entre os dias 2 e 4).
Périphérique Nord é exibido 4 de maio, às 21H30 (Cinema São Jorge) e 7 de Maio, às 19H00 (Cinema São Jorge)
Torna-se claro desde o início de Périphérique Nord (é esse o título original escolhido, em francês, e não Via Norte, na tradução para português), que a paixão automobilística será o tema dominante. Sobretudo pelos carros transformados. Por “aquele bichinho” do tuning. Como uma extensão mecânica do proprietário. Esta paixão pela estética recebe a devida atenção e rigor do realizador, não só pela imagem, mas também pelo desenho de som (a cargo de Joana Niza Braga e Ricardo Leal no som directo). Já agora, porque não dizê-lo, pela música (do compositor uruguaio Diego Placeres). Um acerto global que se revela pela forma como cada cenário e plano é milimetricamente pensado, mesmo que o tom de improviso da conversa seja pouco perceptível.
A conversa com o Paulo decorreu via telefone após a apresentação do filme no festival Visions du Réel, em Nyon, na Suíça. E foi logo pela estranheza dessa paixão que começámos. Carneiro assume a influência: “O filme tenta defender o fetichismo do próprio carro. Cada um tem direito a gostar do que gosta”, justifica-se. No seu caso, tudo começou a partir do gosto que o pai sempre teve pelas ‘quatro rodas’. Sobretudo depois de ter migrado da aldeia para Lisboa e montado um negócio de hotelaria. “A forma dele desfrutar era ter um bom carro. Fazer viagens e ir confortável. Acho que essa influência pode vir um pouco daí. Como os emigrantes que chegavam à aldeia com bons carros, exibindo modelos que não havia em Portugal. Ou carro com mais cavalagem. Isso vem um pouco daí.” Aliás, o cineasta conserva ainda “fotografias dos anos 90, com o meu pai, a minha irmã e a minha mãe em frente ao carro. Acho que o carro pode ser considerado como símbolo de muita coisa. Havia essa valorização do veículo.” Aliás, no início de Via Norte é bem visível essa paixão pelo automóvel em diversas fotografias de época com famílias a posar ao lado dos carros.
Poder-se-ia dizer que esta aproximação ao universo motorizado é uma valente inversão ao ambiente bucólico de Bostofrio, o seu anterior filme de 2019, no qual Paulo Carneiro investiga as origens do avô que desconhece, já que o pai cresceu apenas com a mãe dele. Mas não. Percebe-se a proximidade do realizador, questionador, com as pessoas. Percebe-se também o rigor do plano. Percebe-se a ideia de mise-en-scène. Da representação que decorre como conversa improvisada.
As viaturas são vistosas. Modelos vintage, como o Wolkswagen Polo G40, daquele que confessa possuir mais de uma dezena. “É só mais um”, refere com aparente desdém o dono daquele que repousa na garagem. “Quando compro outro é para me satisfazer outra vez.” Ou então quando o set muda para num serviço de lavagem rápida para apreciar um Golf GTi de alta cilindrada, pertencente a um outro emigrante entusiasta da marca Seat Ibiza, o qual confessa ter conhecido a namorada “através dos carros”. Ou até o mais vigoroso Ford Focus ST, 2.5 – 226 (HP) – 2007, mais um carrão apresentado com títulos iluminados que o enunciam e descrevem as suas características, como se estivéssemos dentro do popular videojogo Gran Turismo, muito dedicado ao tuning. Há até o casal do Lamborghini Huracán, de 610 cvs, que nunca se cansa de ser fotografado junto dele. No entanto, o automóvel mais icónico do filme acaba mesmo por ser o Toyota Celica 1.6 STi vermelho, com os faróis que levantam, o carro de estimação de Paulo Carneiro que serve de elo de ligação entre estes diferentes testemunhos de emigrantes. Um carro, segundo nos confessa Carneiro, que se tornou célebre com o sucesso alcançado pelo piloto finlandês Juha Kankkunen e o espanhol Carlos Sainz, depois de eles começarem a correr com esse modelo. “É um modelo com imensa personalidade”, declara com regozijo. “O carro para mim é quase como uma extensão. Interessa-me a força que a personalidade do carro pode passar. Porque és tu. O carro és tu, de certa maneira.”
É então essa natureza, referida pelo nosso interlocutor, que associamos ao seu próprio cinema, pela forma como capta a realidade que deseja filmar e mostrar. “Isto parte um bocado da ideia do que é que a escola te ensina quando fala do ‘cinema do real’. A ideia de acompanhar a vida de alguém. Eu sei que são pessoas reais a falar das suas vidas. Embora exista sempre um lado de ficção e de documentário. Mesmo assim tento trabalhar a imagem com o máximo rigor. É a ideia de existir uma dinâmica dentro do quadro sem a câmara se mexer. Isso é uma coisa que vem do… acho que não é preciso dizer… Oliveira (risos).”
Na verdade, essa referência essencial de cinema fora já expressa anteriormente. Algo que sublinha, a pensar no mestre Manoel de Oliveira: “Para ter movimento, não é preciso ter câmaras a abanar. E é divertido filmar assim. É um desafio, eu conheço o quadro e os limites. Não há marcações nem instruções e nenhum dos intervenientes. Eu vou-me mexendo no plano. É essa a ideia. Assumo que quero trabalhar a minha presença. Há uma tentativa de provar às pessoas que os planos fixos têm dinamismo.”
Depois do lado mais bucólico de Trás-os-Montes, em Bostofrio, e da mecânica e o design evidenciada em Périphérique Nord, Paulo Carneiro apresenta-nos outros projectos que tem em diferentes fases de desenvolvimento. Um deles chama-se A Savana e a Montanha e já está feito. Aliás, durante o IndieLisboa seriam exibidos excertos na secção Lisbon Screenings. Ainda que se trate de um dispositivo ligeiramente diferente. “É importante partir para outras coisas”, assume. Trata-se de um filme produzido em Trás-os-Montes e aborda o problema ecológico social em redor da exploração do lítio. O realizador revela que “está a ser muito difícil lutar” e que já lhe pediram para os ajudar, para dar a conhecer essa realidade. “Fiquei chocado quando vi o que aconteceu à montanha, perceber a devastação que fica, a percentagem de lítio que havia ali, como se poderia explorar. Fiquei chocado e percebi que faria sentido avançar.”
Um outro projecto passa por Chã das Caldeiras, na Ilha do Fogo, em Cabo Verde, e que deseja começar a filmar ainda este ano o quotidiano e os anseios de um grupo de jovens locais. Com a particularidade desta co-produção com o Uruguai já ter o financiamento de entidades como o Ibermedia, Eurimages, CNC e ICA. “Sinto muita afinidade com estas pessoas. Fui lá e voltei várias vezes”. Em grande parte, prende-se com a “vontade de romper o estereótipo daqueles que querem sair. Mas eles não querem sair da sua terra. Querem ficar na sua aldeia. Reconstrui-la. Eu revejo-me muito nisso. Na ideia de construir qualquer coisa. O interessante é procurar pessoas que saem do estereótipo e trabalhar essa temática.” Em termos do dispositivo cinematográfico, Paulo Carneiro reconhece que “andará à volta da mesma coisa, mas trará ideias novas. Há esse lado de me revisitar, mas para sublinhar a minha vontade de estar ali com eles. O bom de ter financiamento é ganhar tempo para filmar. Isso deixa-me mais confortável.” O que o faz exclamar com alívio: “É a primeira vez que faço um filme com dinheiro.”
Paulo Portugal
[Foto em destaque: Paulo Carneiro ©Pedro Canavilhas]