Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, Anatomie d’une Chute teve a estreia portuguesa no Leffest – Lisboa Film Festival. A terceira longa-metragem de Justine Triet, escrita em conjunto com o seu parceiro Arthur Harari, aparenta ser um típico courtroom drama, contudo revela-se muito mais um drama contemporâneo sobre como julgamos os outros e as suas relações. Quando um homem é encontrado morto pelo seu filho perto de casa, a sua esposa é, imediatamente, apontada como a principal suspeita de ter cometido o suposto crime.
Anatomia, segundo a sua definição, é a “arte de dissecar as partes de corpos organizados para lhes estudar a estrutura”, e é isto que Triet faz, e bem, no seu filme. Anatomie d’une Chute não revela ser sobre o crime ou quem o cometeu, mas sobre o que poderá ter levado a esse crime e é isso que é dissecado em tribunal. A morte que ocorre no início do filme é um pretexto para podermos julgar e ver ser julgado o casamento do casal. A realizadora francesa coloca na “platina” do seu “microscópio” a relação destes de modo a dar-nos uma aula de anatomia sobre a mesma. Inspirado em filmes como Scenes From a Marriage, de Ingmar Bergman, ou o mais contemporâneo Marriage Story, de Noah Baumbach, o tribunal é uma ferramenta para a desconstrução desta relação e da forma como se relacionam homens e mulheres na nossa contemporaneidade.
Todavia, o filme prova ser tanto sobre o casamento das duas personagens como sobre a construção de narrativas, que provêm dos julgamentos que fazemos uns dos outros. O jogo aqui é criar a melhor narrativa em favor de uma verdade à qual não temos acesso (a realizadora fez questão que os próprios atores também não tivessem conhecimento desta verdade). Anatomie d’une Chute anda, então, em volta de camadas de ficção, à semelhança de Gone Girl, de David Fincher, filme que parece estar bastante presente na memória do espectador durante a visualização deste.
Sandra (Sandra Hüller) e Samuel (Samuel Theis) são ambos escritores – esta é talvez a primeira camada da construção de narrativas, pois ambos constroem narrativas profissionalmente. Numa segunda camada, os dois advogados, sem terem acesso a toda a verdade, preenchem as lacunas desta com as suas próprias narrativas ficcionalizadas. E, ainda, numa terceira camada, as testemunhas, em especial o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), também elas sem acesso à verdade, constroem a narrativa que para elas parece fazer mais sentido, tendo em conta os factos que reconhecem. A questão para a realizadora não é que o espectador tenha acesso à verdade, mas que reflita sobre a forma como a construção narrativa e as suposições que todas estas personagens trazem para cima da mesa influenciam também a sua própria narrativa e a narrativa que o filme conta. Também o espectador vai criando uma narrativa à medida que recebe os dados oferecidos pelo filme, construindo assim uma quarta camada de construção narrativa.
A ideia de que nunca temos realmente acesso à verdade está lá para nos provocar. No final de contas, apenas conseguimos compreender totalmente aquilo que é real para nós mesmos. A nossa realidade pode não ser a realidade do outro ou ser real para este, mas isso não faz dela menos real. Triet indaga que existem várias realidades e, contudo, todas elas igualmente verdadeiras. Sandra é alemã, no entanto no seu relacionamento a língua usada para comunicar é o inglês. Durante o julgamento, por sua vez, é obrigada a comunicar em francês, língua materna de Samuel. Esta troca de línguas parece contribuir também para a falha de comunicação e, involuntariamente, ajudar na criação destas narrativas ficcionalizadas. A deficiência de Daniel (que ficou parcialmente cego durante um acidente) colabora nisso mesmo, não compreendemos nada e também não vemos nada. O filme coloca em perspetiva a forma como casais comunicam ou falham em comunicar e como esta falha de comunicação pode levar a uma queda da relação. A queda, referida no título, parece ser referência ao declínio do casamento, muito mais do que a uma queda física.
É o casamento que vai a julgamento e é neste julgamento que passamos a maior parte do filme. No que para uns parece ser alvo de crítica, o ritmo lento, a realidade é que esta demora é necessária. Primeiro, para nos mostrar como uma relação pode ser vítima de uma análise tão minuciosa por parte dos outros e, em segundo lugar, como preparação para a cena mais importante de todo o filme: o flashback da discussão do casal (único momento em que temos acesso à personagem de Samuel). Esta discussão, talvez uma das melhores sequências de cinema deste ano, é o clímax do filme. Parece ser o culminar de todas as questões centrais do filme: a análise da relação; a duplicidade da verdade e a falha de comunicação do casal. E é ainda nesta que podemos levantar algumas questões sobre a forma como as relações parecem estar a mudar na contemporaneidade.
Triet traz-nos uma relação contemporânea, não é a típica relação e nem sempre encaixa nos moldes e nas ideias pré-concebidas que a sociedade parece ter construído para as relações. Todas as pessoas são diferentes e, consequentemente, a forma como se relacionam é também ela diferente e única. O que para uns pode resultar, para outros pode não caber no seu conceito de relação, e a nossa sociedade continua, constantemente, a falhar em reconhecer esta singularidade das relações. Há coisas que são vistas como “normais” e coisas que são vistas como “anormais”. Neste sentido, a realizadora francesa parece querer abrir os olhos do espectador para este problema que, infelizmente, continua a ser atual. Por outro lado, quer também questionar as normas que a sociedade tem para o papel da mulher numa relação e, neste caso, num casamento. Será a mulher bem sucedida e poderosa, vista automaticamente de forma negativa pelo espectador? Porque parece haver tanta facilidade em apontar o dedo a Sandra por esta não estar tão envolvida na vida do filho como o seu pai? Porque vemos a sua bissexualidade como fator determinante na questão da traição? A realizadora coloca-se numa posição imparcial – quer trazer, sim, estas questões para cima da mesa, mas não quer que vejamos Sandra como uma vítima. A forma como a câmara a filma de forma poderosa e altiva exemplifica bem esta teoria.
O caso de Amanda Knox, recentemente resgatado por um documentário da Netflix, foi uma das inspirações de Justine Triet. É a forma como assumimos aquilo que uma pessoa deve ser ou como deve agir que nos leva a assumir a sua inocência ou a sua culpa. Esta ideia pode ainda servir de crítica ao mediatismo decorrente deste tipo de julgamentos, que acaba por influenciar a perceção da sociedade acerca da verdade. No caso de Anatomie d’une Chute, a referência ao mediatismo é ligeira, mas não é inexistente. Triet quer que o espectador perceba também de que forma este influencia as próprias testemunhas (principalmente o filho do casal, que dá por si a questionar as suas próprias memórias). O foco do filme, por isso mesmo, são as personagens, o que leva a grandiosas performances, principalmente da atriz principal, que defende a sua homónima com unhas e dentes.
Anatomie d’une Chute é composto por um interlaçar de camadas. Quanto mais o analisamos, o que parecia ser uma narrativa simples, revela-se de uma complexidade exuberante. É, sem sombra de dúvida, uma das grandes obras-primas de 2023.
Inês Moreira
Um comentário a “A anatomia de uma relação em Anatomie d’une Chute”
Muito bom ❤️