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73ª Berlinale (2023) Berlinale Críticas

A Verdade Universal no Pesadelo Febril

Nunca deixará de ser deprimente ver um filme único e perceber que a maioria dos grupos de críticos e espectadores, unidos nos usuais círculos de pensamento precoce logo após sair da sala, estão unidos num desdém pelo filme. Trocam críticas que, em grande parte, mostram uma incompreensão das regras que o filme está a criar para si próprio, tentando então colocá-lo em caixas pré-existentes no qual este não encaixa.

Perpetrator, de Jennifer Reeder, é um retrato surrealista do horror sentido por jovens raparigas durante a mudança da puberdade face às suas mudanças corporais e psicológicas e a nova visão exterior social em que é colocada.

A identidade visual da cineasta, que, em vez de uma formação oficial em cinema, estudou artes visuais, descende diretamente das suas primeiras curtas metragens de video art (seria plausível imaginar este filme como um produto artístico da autoria das protagonistas de Lullaby e Nevermind, curtas realizadas e protagonizadas por Reeder em 1999). A estética artística do filme é experimental de uma forma muito única: uso recorrente de duplas exposições, efeitos digitais, que se auto-evidenciam, e diálogos líricos e teatrais. Os burburinhos acusavam o filme de ser uma amadora pastiche lynchiana (cineasta normalmente associado a uma exploração da mitologia americana que a fita com níveis iguais de fascínio e horror), o que não só demonstra uma falta enorme de tato face à obra (e uma compreensão completamente errónea de Lynch em si), mas também uma incapacidade de ver esta linguagem não-normativa como algo trabalhado e propositado, em vez de equívocos de um artista amador (a primeira curta-metragem de Jennifer Reeder é datada de 1993, e a sua filmografia é extensa…).

Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms

Tal como não é uma pastiche lynchiana, também não é um objeto de fetichismo retro do qual era paralelamente acusado de ser. O filme não se passa nos anos 80, apresentando-se de forma completamente atemporal, pegando em arquétipos de várias épocas de forma a criar um mundo de texturas cativantes. Não se limita ao modus operandi que os verdadeiros objetos fetichistas seguem: escolher mãos cheias de objetos marcantes de uma era e conjugá-los de forma estática, tentando ressuscitar o cadáver do passado com o poder da nostalgia opiácea (observável em grande parte do cinema de terror contemporâneo). 

Muito mais facilmente poderia ser equiparado a Angela Carter e as fábulas e contos de fada tradicionais que filtra através duma visão grotesca e aterrorizada face às mudanças do corpo e da mente de uma jovem rapariga durante a puberdade.

Os elementos de referência mais evidentes não eram mencionados nas conversas: a lógica emocional e não racional do cinema de terror italiano, televisão, filmes e livros de terror para crianças, ou até cinema experimental de série Z (ao longo do filme encontram-se várias referências muito diretas a Death Bed: The Bed that Eats de George Barry) … Um dos maiores equívocos é tentar ver neste filme qualquer tipo de tentativa de se inserir no género Young Adult (ou YA). 

Perpetrator não é adolescente ou juvenil, mas sim infantil. A narrativa foca-se na protagonista adolescente de forma a representar uma no man’s land entre a infância e a vida adulta. Está presente, e em constante análise, o despertar da sexualidade e mudanças corporais únicas da puberdade, postas em perspetiva através de uma visão do mundo que ainda é dominada pelas sinapses e raciocínios de uma criança. 

Um dos exemplos mais fulcrais desta natureza é a representação das personagens adultas, vistas, não como demónios controladores, mas como bruxos misteriosos, cheios de segredos que as personagens ainda não conseguem entender (a personagem de Alicia Silverstone é o arquétipo de “bruxa solteira”, até se chama Hildy, remetendo à série original de Sabrina, The Teenage Witch…). Este mundo misterioso é visto como deficiente da vitalidade física, mental e emocional da criança, que por isso mesmo quer roubar os atributos dos adolescentes, tendo inveja de já terem começado a compreender o mundo racional e definido das formas, ainda sem terem perdido um pé firmemente posicionado no poço ctónico borbulhante da experiência real e visceral.

Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms

É como se Jennifer Reeder tivesse ficado doente no dia em que entrou na puberdade, faltando à escola e ocupando-se em casa com maratonas televisivas de Goosebumps, a série de terror para crianças. Enquanto extremamente afetada pelos efeitos narcóticos do xarope para a tosse, o seu cérebro ocupa a sua mente com estas narrativas febris na sua sesta pós-episódio (infetadas por novas ansiedades que borbulham debaixo da superfície). 

A outra grande crítica que predomina o discurso que pairava após a sessão, era o da sua aparente incoerência narrativa (ou o desejo de ser aleatório como destino final estético, sem qualquer justificação). Esta psicodelia delirante não é de todo sarcástica e irónica e não tenciona propor ironia como justificação para a aparente falha. Reeder construiu uma obra que é dolorosamente genuína no que está a tratar, fazendo o filme extremamente coerente, apenas não de uma forma racional. 

É possível criticar a narrativa como mal-trabalhada e a sua metáfora como incongruente e falhada, mas essa análise, fora de ser a mais fácil e aparente, nega o facto de a cineasta estar a apresentar um mundo de verdade emocional ao invés de racional. O espectador passa uma hora e trinta e nove minutos dentro de um retrato expressionista em movimento de uma realidade emocional que é tão pura e verdadeira como a de um sonho, que, tal como esta narrativa, não está preocupado com um sentido narrativo tradicional ou uma maquinação química de metáforas legíveis em proporções de 1×1.

Todas as ansiedades e horrores de alguém que passa pela puberdade num corpo normativamente feminino são colocados em luta no ringue do cinema sob a influência de esteróides: desde o medo constante de penetração à realidade de uma nova expulsão de sangue mensal. Este pesadelo não trabalha no mundo das metáforas e analogias, mas sim numa arena selvagem de lirismos simbólicos, e é isso que faz dele uma representação artística tão impactante e cosmicamente real.

Vasco Muralha

[Foto em destaque: Perpetrator, Jennifer Reeder © WTFilms]

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