Águas do Pastaza não é um filme antropológico, nem tão pouco etnográfico. E ainda bem, pois todos sabemos os perigos que a antropologia visual corre quando olha a vida dos outros. Alertados de antemão para estes limites de acesso da representação, a sinopse do filme suscita imediatamente uma certa apreensão face ao que vamos ver. Porém, desde logo ela se dissipa nas palavras de Agostinho da Silva escolhidas pela realizadora, Inês T. Alves, para anunciar, logo no primeiro plano do filme, o que nos será mostrado daí em diante.
“As qualidades infantis deveriam conservar-se até à morte, como qualidades distintivamente humanas – as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação.”
Águas do Pastaza é um filme sobre a infância e não um estudo sobre as crianças das comunidades Achuar, que habitam a floresta da Amazónia junto à fronteira que separa o Equador do Peru. Pode ser uma infância outra, remota a um tempo que já não existe na memória de muitos de nós, até mesmo estranha, mas é a infância, em todo o seu esplendor, do qual todos nós guardamos uma imagem, que nos olha do lado do ecrã. Estranha porque as crianças protagonistas da infância que o filme mostra parecem demasiado autónomas para serem crianças. Das duas uma: ou as crianças são adultos em potência, isto é, aqueles que se caracterizam por um modo de existência definido pelas qualidades do saber, do trabalho e da separação, ou as crianças são mais adultas que os adultos, e são-no na medida em que precisamente se mantêm crianças, ou seja, na medida em que as qualidades da imaginação, do jogo e da totalidade, ao invés de descobrirem, exprimem um modo de sintonia mais autêntico com o meio. É isto que Santo Agostinho pretende ver conservado, e que Águas do Pastaza pretende mostrar. Elas andam de catanas na floresta à procura de comida, pescam, lavam a sua roupa, cozinham a sua comida, tudo sem a presença de um adulto. Tratando-se de um documentário e não de uma ficção, devemos, na medida do possível, acreditar no que vemos, isto é, nessa forma de vida das crianças – é este o segredo do filme, explicitamente colocado em palavras por Agostinho da Silva. Não obstante essa autonomia ser impressionante, o que está em causa é uma forma de vida, que o filme não só nos mostra em plena harmonia com o meio, razão pela qual não estranhamos ver uma criança manusear com tanta perícia uma catana e, com igual perícia, um telemóvel, como também nos mostra a possibilidade de reter a infância, de fazê-la durar mesmo nas acções menos infantis.
Entre banhos, a brincadeira, entre a pesca, a tranquilidade, entre o cozinhar, a cooperação, … entre tudo, entre a vida, a infância. E não há maior dificuldade para o cinema do que a de mostrar a infância, porque aquilo que dela é mais visível constitui uma das maiores dificuldades para a representação cinematográfica, para não falar do invisível. À parte alguns planos que parecem retirados dos documentários sobre a vida selvagem, os quais têm o mérito de recordar as manhãs de fim-de-semana da infância, e que a televisão portuguesa muito gostava de acompanhar com esse género de documentários, Águas de Pastaza supera essa dificuldade, isto é, torna visível o invisível, com toda a delicadeza e respeito que a infância exige, mostrando-nos a totalidade de existir sempre criança. Como no último plano do filme, onde, voltadas de costas para nós, as crianças correm livres e sorridentes em direcção à àgua, como se só assim o mergulho fosse possível.
E por muito longínquas que sejam as águas do Pastaza, o rumor da natureza que as cerca é o rumor que se impõe nem que não seja apenas numa memória de infância de qualquer um de nós. Já o dissemos, é um filme sobre a infância, mas não sobre a nossa, como é claro. Contudo, e aí reside a beleza do filme, ele olha-nos, lembra-nos esse precioso passado ou, quem sabe, somos nós que o olhámos e lembramos o presente esquecido através do filme, pois são qualidades intrínsecas que permanecem de algum modo durante toda a vida.
Cátia Rodrigues
[Foto em destaque: Águas do Pastaza, de Inês T. Alves ©Oublaum ]