Há quem traga um santinho no bolso e quem saiba de cor a oração. Na primeira longa-metragem de Cristèle Alves Meira, Alma Viva, mergulhamos numa espécie de submundo pouco explorado na cinematografia portuguesa: o quebranto e a bruxaria. A aldeia da Junqueira, na região do Vimioso, é o pano de fundo de uma intriga simples na teoria. É verão, cheira a Agosto, e os emigrantes retornam à terra-natal. Um deles é a jovem Salomé, que passa os meses mais quentes em casa de uma avó que nos serões canta a São Jorge junto de velas e maços de cigarros – monta-se, assim, a estaminé do ritual, que lança o mote para o desenrolar desta trama.
Alma Viva vem reacender a chama do terror folclórico português enraizado no credo popular que clama os santos e desconfia dos vizinhos. Conto moderno de caça às bruxas, o filme vem trazer ao ecrã luso os agoiros e superstições desta família emigrada, cujo fado é revirado por um peixe envenenado por nada mais que malquerer.
Cristèle Alves Meira nega o realismo mágico de Alma Viva, mas a facilidade com que a realizadora esfumaça realidade e fantasia é notória. Os elementos que poderiam ser macabros – o altar a São Jorge, cujo ritual se inicia com a pequena Salomé a acender um cigarro; engolir uma cabeça de galinha para espantar o quebranto – acabam por se configurar numa naturalidade exímia, fazendo do espectador uma espécie de voyeur que espreita pelos cantos da casa da avó de Salomé. E, por outro lado, os momentos realmente arrepiantes são-no apenas por este realismo característico. Sobressai, em Alma Viva, a intuição: o modo como as interações de Salomé são filmadas estão carregadas de pressentimento. Paira no ar um desconforto indescritível quando esta vai até à casa da velha Gracinda, velha de aparência inofensiva mas cuja aura aponta para a desgraça iminente.
Até esta visita, o ritmo de Alma Viva vai traçando-se devagar. Acompanhamos Salomé nos seus passeios pela vila e a ausência de amigos da sua idade – a sua companheira de brincadeiras é a Avó, cuja ternura sente-se desde o primeiro momento. Conhecemos a aldeia, as suas belezas e desacatos e as personagens autênticas que a compõem; é Salomé que nos pinta Trás-os-Montes e as idiossincrasias de quem os habita. O carinho que a pequena nutre pela Avó e pela família disfuncional é cultivado também por nós, através de diálogos autênticos e discussões intensas que se tornam quase cómicas.
A morte da Avó de Salomé, encomendada por Gracinda, custa muito. O seu pré-mortem é visceral, passa uma noite moribunda, sempre ao lado de Salomé. É, no entanto, necessária, pois acaba por marcar o passo do resto da trama. É na morte da Avó que Alma Viva encontra o seu trunfo. O folclore permanece, mas entra uma nova componente que já vislumbrávamos à distância: a dinâmica familiar descompensada entre os cinco filhos que experienciam o luto.
Essa mãe que parte permanece, no entanto, sempre presente, através da força dos objectos. O seu altar mantém-se intocável, recebendo de novo a presença de Salomé que repete o “ritual”, desta vez sozinha, vestindo a camisa que a Avó trazia vestida e que enverga durante vários dias, mantendo aceso o seu espírito. Por entre as discórdias familiares, lutas a punho cerrado entre irmãs e os bitaites inesperadamente feministas de Dantas, o irmão cego, permanece Salomé. No seio da família é a apaziguadora, pedindo que não se zanguem, mas esta não é a sua única missão: pretende vingar-se de Gracinda, pelo mal que inflingiu à Avó.
Na aldeia, ouvem-se os rumores de uma jovem possuída por um espírito maligno. A dúvida nunca fica esclarecida, mas gostamos de pensar que é a própria Salomé, e não um receptáculo, que assombra os cantos da aldeia durante a noite, matando galinhas e invadindo a casa de Gracinda – é muito mais aterrador pensar na força inimaginável desta vingança tão premente no pequeno corpo da própria Salomé, que a faz esquecer-se das noites que passa a deambular à procura de uma suposta justiça. O mais extraordinário é a própria naturalidade com que a família lida com este empecilho. Sabem precisamente de que é feita a cura, qual cabeça de galinha engolida por inteiro, e compreendem que a única forma de se livrarem desta malfeita é dando finalmente paz à Avó, bruxa-mor de Alma Viva.
A paz chega, bíblica. Em romaria, os filhos (menos Joaquim, a voz acusmática que nunca se chega a revelar) levam a várias mãos o caixão da mãe até ao cemitério. É dia de incêndio, as chamas e os bombeiros invadem as ruas e as pessoas são obrigadas a deixar as suas casas. Resiste, porém, a necessidade de um descanso comum, e por isso seguem quilómetros a fio com o peso de um caixão e de uma vida. A camisa que Salomé vestia, enquanto sombra de si, desce também. E, no momento preciso, é-nos sanada qualquer dúvida. Cai a chuva. Eis o momento da redenção: “Benza-te Deus, bons olhos te vejam, e os maus quebrados sejam”.
Alma Viva ecoa o folclore português de O Crime da Aldeia Velha, de Manuel Guimarães, ou A Maldição de Marialva, de António de Macedo. Reconfigura, no entanto, os seus trópicos, tecendo os temas com uma modernidade que o faz, mais que credível, real, envolvendo dramas familiares que se repetem de geração em geração, e que qualquer pessoa que transpire Portugal possa reconhecer. Heranças, terras, emigração ou dores familiares são alguns dos temas que convivem lado a lado com a fantasia e a magia que Alma Viva exalta, tornando-as intrínsecas à metafísica do quotidiano. Recupero Minta & the Brook Trout, que de forma tão sábia cantou em ‘Family‘ aquilo que Alma Viva acaba por assinar:
“The vilest thing about family
Is that they own your heart for life
They can make it hurt and make it bleed
And they don’t even have to try”
Kenia Pollheim Nunes
[Foto em destaque: Alma Viva, de Cristèle Alves Meira © Direitos Reservados]