Se há realidade que o cinema francês mostrou, em especial O Desprezo de Godard, é que o fim de todas as histórias de amor se resume a um momento, a um gesto, a um olhar, a um encontro inesperado, que acabam por anunciar a separação dos amantes.
Desse amor perdura sempre uma memória, uma imagem que condensa a trama de todo um passado a dois, que já só “podemos ver, mas não tocar”, uma imagem simultaneamente frágil e avassaladora. É com essa imagem, límpida e plena de serenidade e ternura, que Claire Denis inaugura Avec amour et acharnement – uma imagem do amor em toda a sua extensão de felicidade e fragilidade, que não sobrevive ao filme. Esta sequência será o último suspiro da sua relação, pelo qual a vida entra e domina o espaço da imagem. O que se segue é uma imitação da vida.
Juliette Binoche (Sara) e Vincent Lindon (Jean) são os protagonistas de uma ideia de amor perfeito. De regresso a Paris, uma melancolia abate-se sobre eles perante a possibilidade de fantasmas passados, nada mais do que memórias, se tornarem corpos, eventos do presente. Todos temos uma dívida com o passado – um acontecimento trágico que esvazia as nossas expectativas em relação ao futuro, um qualquer destino que sabíamos ser nosso e que imprevisivelmente nos escapa, alguém que nos abandona ou nós abandonamos e inscreve no nosso futuro uma dor irremediável e indelével.
Para Sara, tudo isto se concentra em François (Grégoire Colin), seu ex-amante, mas também melhor amigo e ex-sócio de Jean, cuja aparição, por mais breve e ténue que se faça sentir, a lança numa profunda consternação. Para Jean, a possível recuperação ou reaproximação ao desporto, esse destino da juventude por cumprir, representa o regresso de François, que faz ruir o edifício de estabilidade da relação. À medida que os espaços exteriores vão desaparecendo do filme, cercando as personagens, e os planos se vão aproximando dos seus rostos, envoltos em agonia, pressente-se que o desfecho desta história só poderá ser um.
Juliette Binoche (Sara) e Vincent Lindon (Jean) / Avec amour et acharnement, Claire Denis © Curiosa Films 2022
Dispostos numa estrutura narrativa não linear, os acontecimentos precedentes ao desfecho encadeiam-se vertiginosamente uns nos outros ao ritmo das emoções de Sara e de Jean, mas sobretudo de Sara. É a fragilidade de Juliette Binoche, exposta no filme sem qualquer espécie de pudor, que nos arrasa a cada suspiro, lágrima, berro, suplício. E o que pode ser mais marcante, no cinema e na vida, do que a fragilidade?
Faltou ao filme de Claire Denis não encerrar Sara nessa fragilidade, não fazer dela refém da história que conta, submissa de uma fatalidade, aquela de tantas mulheres que estão condenadas a amar um e só um homem por toda a sua vida, convenção da qual a realizadora não se conseguiu desfazer.
Mas de uma coisa podemos estar gratos a Claire Denis – Sara foi a única que sobreviveu ao filme e tal nada mais é do que um (único e tão raras vezes possível) final feliz. E veremos, guardaremos na memória aquela primeira imagem de felicidade, que se estenderá para lá do plano preto, para lá da sala de cinema.
Cátia Rodrigues
[Foto em destaque: Juliette Binoche (Sara) e Vincent Lindon (Jean) / Avec amour et acharnement, Claire Denis © Curiosa Films 2022]