Ao explorar o programa da 73ª edição da Berlinale é difícil não ficar maravilhado com as numerosas ofertas de cinema contemporâneo que este oferece, mas isto não nos deve ofuscar a atenção da secção Retrospective. Esta secção dedicada à história do cinema foca-se, em cada edição, numa temática diferente.
Habitualmente organizado pela da Cinemateca Alemã, este ano a abordagem foi especial: mantendo a curadoria de Rainer Rother, diretor da Deutsche Kinemathek, foram por ele escolhidos 29 cineastas, argumentistas e atores a quem deu carta branca para a escolha de um filme predileto que se enquadrasse dentro do tema “Young at Heart”, focando-se em filmes “coming of age”
Rainer Rother disse: “Nesta altura, com as alterações climáticas, a pandemia e a guerra, a geração jovem está a enfrentar medo, dúvida e um futuro incerto. O cinema – como uma instituição cultural também em fluxo – oferece um lugar onde encontrar e ilustrar ideias para moldar o futuro. (…) Podem imaginar liberdade e exprimir ideais, evocar sentimentos profundos, criar comunidades, e deixar marcas para toda a vida. Filmes coming-of-age, em particular, são um diálogo de possibilidades, de onde a audiência pode retirar perspetiva e inspiração sobre como moldar o futuro.”
Depois de dois anos marcados pela pandemia, temos finalmente, em 2023, uma edição da Berlinale sem medidas de restrição que aposta num regresso à experiência anual comunitária de ver cinema em liberdade, permitindo aos espectadores do festival mergulharem nas obras e no próprio ambiente destes 11 dias.
Ao ver as escolhas da Carta Branca desta secção, o primeiro sentimento é o quão variado o programa é, mostrando as multitudes imensas que se encontram no género. Isto não é indicado apenas para bradar louvores ao género, mas porque mostra que a escolha de cineastas, atores e argumentistas foi feita de forma a englobar perspetivas que ocupam todo o espectro da visão artística, não só na sua criação, mas também no seu visionamento.
Para mostrar esta variedade, é possível fazer alguns destaques:
Nadav Lapid, realizador israelita conhecido por criar uma obra muito densa, não só a nível temático, mas também formal, da qual se destaca, por exemplo, A Professora do Jardim de Infância, realizado em 2014, um filme que explora as teias sinuosas da ética). Lapid escolhe De Bruit et de Fureur, realizado em 1988 pelo iconoclasta, recentemente falecido, Jean-Claude Brisseau. Este filme, que se tem vindo a tornar de culto ao longo das últimas décadas (principalmente tendo em conta o restauro recente), destaca-se pela abordagem violenta e chocante, e ocasionalmente surreal, com que trata a vida dos jovens que protagonizam o filme.
Tilda Swinton, que além do seu papel de atriz é também conhecida pela sua ardente cinefilia eclética, faz uma escolha fora da caixa, decidindo programar Kiseye Berendj, realizado em 1996 por Mohammad-Ali Talebi. Este filme iraniano conta de forma simples uma história de uma criança no Teerão na sua missão dedicada de comprar um saco de arroz. Kiseye Berendj permanece até hoje pouco visto e com esta escolha Tilda Swinton expõe-no a um público maior.
M. Night Shyamalan é um realizador que dentro do mainstream consegue sempre ir contra a corrente, não só através das suas narrativas bizarras e sempre esperançosas, mas também através de uma apuração cada vez mais extrema de um formalismo autoimposto. Este ano, escolhe programar The Last Picture Show, realizado em 1971 por Peter Bogdanovich. Esta seleção regressa ao cinema clássico americano, não a escolha mais comum nesta secção (mas que faz todo o sentido tendo em conta o cineasta). Shyamalan decide destacar um filme chave do movimento do New Hollywood Cinema, um rejuvenescimento de Hollywood a autocompreender-se através de novas regras e parâmetros (um paralelo fulcral com o que o realizador tenta fazer na sua carreira).
“Depois de dois anos de pandemia, todos nós nos sentimos como uma personagem num filme coming-of-age” afirma Rainer Rother. Isto aplica-se não só de forma geral, mas também especificamente à redescoberta de uma nova vida do espectador de cinema. Com este ciclo, a Berlinale convida toda a gente a entrar no festival com um olhar novo e perceber o crescimento que já houve e o que ainda há de vir.
Vasco Muralha
[Foto em destaque: Rebel Without a Cause, Nicholas Ray © 2022 Warner Bros]