Rua dos Anjos (2022)
de Maria Roxo e Renata Ferraz
Um encontro no passado entre Maria Roxo, trabalhadora sexual nascida em Moçambique, e Renata Ferraz, realizadora e actriz brasileira, ascende ao tempo presente sob o nome de Rua dos Anjos, a primeira longa-metragem de ambas e a última de Maria. No palco diáfano da intimidade, Renata e Maria entregam uma à outra ensinamentos dos seus ofícios, desvelando as singularidades da história de vida de cada uma para juntas se constituírem uma multidão, mesmo que Maria se tenha ido embora com tanta pressa…
O minimalismo da mise-en-scène dispõe os elementos necessários para o devir actriz-realizadora de Maria e o devir actriz-trabalhadora sexual de Renata. Duas cadeiras, uma cama, um espelho, um tecido rendilhado, e pouco mais. É este “pouco mais”, este resto, que se deita na cama, que espreita pela renda do tecido, que “olha” do espelho. É este resto que excede o espaço fílmico, tornando-se o máximo, o superlativo silencioso, de cuja presença se mostra Maria. É este resto que dá substância à tensão no jogo entre o esforço de aproximação e o refúgio da distância.
A união do universo da realização com o universo do trabalho sexual no mesmo palco, na mesma imagem reflectida no espelho, é o que, em última instância, faz delas realizadoras do mesmo filme. Maria tomou a câmara sem que nenhuma legitimação fosse precisa por parte de Renata, que, por sua vez, abraçou as diretrizes de Maria para reclamar uma vivência, um lugar, mesmo que apenas o do filme, num universo no qual nunca ultrapassou as paredes da representação. Tudo se passa como na preparação de um actor para uma peça, da qual a vida de Maria foi a mais real das encenações. Primeiro, o abandono de si, depois a representação, sob pena do peso de quem somos se tornar intolerável.
Se nos parece que o trabalho de actriz de Renata caminha em direcção ao encontro com a vida de Maria, como se já não se tratasse da interpretação de uma trabalhadora sexual, em sentido universal, mas da interpretação herdeira da história de Maria. Todavia, na relação entre elas, ainda que se mostre no filme como horizontal, impõe-se visível o abismo intransponível entre a representação e o real, o filme e a vida. Porque a própria vida está muitas vezes encarregue de distender os limites da nossa imaginação, que, nas palavras de Maria, “só vai até onde a gente quer”. Renata não pode imaginar a vida de Maria, ou de qualquer trabalhadora sexual, porque não a viveu. A distância que vai de uma para outra firma-se na crueldade a que a vida atirou impiedosamente Maria, ainda que a única medida de comparação para o sofrimento seja a subjectividade. Não obstante, o filme não normaliza a realidade de uma, Maria, nem radicaliza a realidade de outra, Renata. Antes, é a mediação da aproximação ao outro, qualquer coisa de intermédio, na intransponível distância que vai de mim para o Outro.
Sob a forma de entrevista, que Rua dos Anjos pede de empréstimo à tradição documental do cinema brasileiro, a subjectividade interpela o substracto ficcional do filme pela confidência. Maria conta-nos a sua vida, que em (quase) nada vota ao segredo, liberta do pudor da aparência, e Renata expõe, a pedido de Maria, um segredo imensurável, de que o tremor das mãos não esconde o medo. No final, é a confidência que lhes vai permitir reconhecerem-se uma à outra em toda a magnitude de serem aí, uma com a outra, no mundo, no filme. O gesto de criação cinematográfica advém desse reconhecimento para cumprir, no filme de Maria e Renata, o cinema como a arte que, nas palavras de Serge Daney, “nos deu acesso a outras experiências que não as nossas e permitiu-nos partilhar, mesmo que por breves segundos, qualquer coisa de muito diferente.”.
Rua dos Anjos não é um filme sobre Maria, mas antes uma aprendizagem partilhada da distância que cabe num “com”, um projecto cúmplice das duas, como o anuncia Renata no prólogo, necessário à força do desaparecimento precoce e inesperado de Maria: “Eu não quero fazer um filme sobre você, eu quero fazer um filme com você.” Perante este propósito, o filme alcança uma dimensão auto reflexiva sobre as possibilidades da sua própria existência enquanto trabalho inteiramente colaborativo, ao qual acresce uma maior responsabilidade ética em relação ao outro. Não deverá o olhar que procura a revelação do outro perante a câmara e faz dela o sujeito do filme interrogar-se acerca do que de si é testemunho dessa revelação e do que de si é mostrado em relação com ela?
Cátia Rodrigues
Parceria com o CINENOVA – Festival de Cinema Interuniversitário Português
[Foto em destaque: Rua dos Anjos, Maria Roxo © KINTOP]