Lugar que nos é próximo, a família tem sido, repetidamente, tema no cinema português. As duas jovens realizadoras em competição no Indielisboa, Inês Luís e Mafalda Salgueiro, ambas selecionadas para a Competição Nacional de Curtas, abrem-nos as portas para as suas famílias, ainda que de modos muito distintos.
Em Antes de Mim, O Fim, documentário de Inês Luís, somos transportados para antes do seu nascimento, como se ela marcasse o “fim” deste filme. Esta curta-metragem portuguesa revela-se interpelativa pois faz o espectador questionar-se sobre o percurso que levou à sua existência, e é esta mesma questão que leva Inês Luís a embarcar nesta aventura.
A verdade é que vemos, muitas vezes, filmes onde a família é tema central e onde somos apresentados a esta família do ponto de vista do realizador, ou pelo menos sabemos que ele é parte da história. E apesar de podermos sempre afirmar que um filme é feito da perspetiva de quem o realiza, aqui o sentimento é ligeiramente diferente. Primeiro, porque a realizadora ainda não existia na altura em que a maioria das imagens de arquivo que nos mostra foram gravadas ou tiradas e, segundo, porque muito da história do filme em si nada tem a ver com ela diretamente. Só a vemos verdadeiramente a poucos minutos do filme terminar, e apenas somos levados até ela pelo título do filme, que nos fala dela mesma na primeira pessoa. A sua ligação à narrativa é simples: Ana e Nan são seus pais.
Inês Luís constrói o seu filme a partir de fotografias e vídeos caseiros que os seus pais foram tirando ao longo da sua relação. Mais do que uma história familiar, estamos perante uma história de amor. Um romance real mas que, em muito, parece um romance “à filme”. Este lado ficcional do documentário de Inês Luís deve, em muito, ao carisma que ambas as “personagens” (pai e mãe de Inês) têm e demonstram, quer à frente quer atrás da câmara. E apesar da narrativa não se apoiar em eventos que transcendem a vida mundana, e sim em acontecimentos simples e quotidianos, não deixamos de ser agarrados ao ecrã do início ao fim por este casal apaixonado.
“Cozinhar é dar carinho” é o que nos diz a mãe de Mafalda Salgueiro. Comezainas difere logo à primeira vista de Antes de Mim, O Fim pelo género: filme de animação. Apoiando-se na mesma no dispositivo do vídeo caseiro, Mafalda Salgueiro anima por cima deste. A animação funciona muito bem na medida em que nos oferece as cores, as texturas e, diria até, os sabores e os cheiros que tornam este filme numa experiência tão sensorial e bela.
A própria realizadora, na apresentação do filme, diz-nos que esta foi a única forma que encontrou de abrir as portas da sua casa e deixar-nos entrar. A verdade é que se notou desde cedo este espírito acolhedor da sua família, que transportou os rissóis do filme para o próprio cinema São Jorge. O espectador entrou naquela casa. E, embora estejamos perante uma animação, o filme tem um lado muito próximo, e parece conseguir colocar o espectador ao lado da mãe de Mafalda enquanto ela conta como fez rissóis pela primeira vez aos 13 anos e como toda a gente da família dela queria que ela os fizesse mais vezes.
Da sopa de coentros, às migas com costado, aos rissóis de pescada, este filme deixa-nos entrar e senti-lo. É um filme que evoca a alegria na sala e que nos faz querer também estarmos perto da nossa família.
O amor pode ser visto de muitas formas. E se em Antes do Mim, no Fim sentimos o amor romântico transformar-se num amor familiar. Essa transformação pode ainda rimar com o título que avizinha um fim de qualquer coisa. Em Comezainas, o amor vem em forma de cuidado. O cuidado que se tem com o outro a quem queremos dar uma reconfortante refeição. Um amor em forma de rissol: quentinho e saboroso.
Aquilo que une os dois filmes é talvez a sua vontade de olhar de forma diferente para um tema comum do cinema português e, ainda assim, perpetuar a sua ligação com o amor. Num deles: uma bonita e simples história de amor. No outro: uma receita de aquecer o coração. O tom jocoso que domina ambos leva o público a nunca perder o sorriso na cara. E cinema é sobre isso mesmo: sobre agarrar espectadores, fazê-los sentir coisas e fazê-los querer voltar à sala de cinema para repetir a dose.
Ambos os filmes estão presentes na sessão Curtas Nacionais 3, ao lado do filme experimental Subir e Sumir, de Francisco Queimadela e Mariana Caló, e de By Flávio, a curta-metragem selecionada para a Berlinale, de Pedro Cabeleira. A próxima sessão será no dia 8 de maio, pelas 21h30, no Cinema São Jorge.
Inês Moreira
[Antes de Mim, O Fim, de Inês Luís – © IndieLisboa]