Creuse (2022) é um constante trabalho de presentificação do som. O baque surdo que dele emana torna possível a emergência de um exercício necessário à não-existência de uma vida. Por levar ao extremo a sinestesia da experiência cinematográfica é uma curta-metragem que se distende. Por pedir um tipo de compreensão anormal, é exibido numa maratona noturna, em Boca do Inferno, no Indie Lisboa.
Guillaume Scaillet, autor de En pleine Lulu (2020), Jouvencelle (2021) e de Extra Flavour (2021), presentifica-nos, desta vez, com uma obra marcadamente sua, uma ficção que se estende numa realidade de horror, mostrando uma rotina polvilhada de gritos interiores e de imagem decepadas onde o silêncio dá lugar aos limites da destruição. Aqui, o trabalho sonoro de Pierre-Louis Clairin, Adrien Cannepin, e Mikhael Kurc, impõe-se sobre a restante produção, conferindo um peso avassalador à presença do som e do silêncio, a sons que não devem ou não podem ser ouvidos, e à preponderância que a audição constitui em relação à perceção de um mundo e de um corpo.
O espectador entra na narrativa através do silêncio, que é fácil de aceder, ficando depois prisioneiro dela, mesmo quando este silêncio se transforma em ruído inusitado, desagradável e ensurdecedor. Só há um movimento de libertação possível, através da paragem do tempo, de uma fuga do desespero, de um abrandamento progressivo do batimento cardíaco – cujos atributos consoladores poderão fazer desaparecer a angústia terrível de ter de ouvir o interior de si.
O agenciamento de décors simples fazem focar a atenção no único personagem da narrativa, Marc, interpretado por Raphaël Quenard, cujo papel é certamente de difícil digestão. O desconforto que faz sentir ao espectador transfigurado por cada fração das suas expressões faciais afigura-se igualmente como um elemento de extrema importância na compreensão das relações entre o eu e o outro, o eu e o mundo, o eu e o seu interior.
As paredes frias e sem veios são cobertas por placas de silêncio devastador, afirmando o horizonte gélido sem limites que circunda o protagonista. Marc, numa fase inicial, rodeia-se de um esforço atento às práticas saudáveis que nutrem o seu corpo. Mas, de súbito, os seus olhos retêm fixamente o vazio ou talvez a esperança do regresso próximo de Louise, a sua namorada. Num movimento estático, os ponteiros do relógio dão-lhe uma leve noção de tarde. Durante alguns instantes ainda tem tempo para respirar, antes que o sangue lhe sacuda a cabeça, antes que as fogueiras ininterruptas comecem a incendiar o interior da sua consciência. A ausência desta figura feminina é um catalisador da sensação do vórtice anguloso de agonia, pelo que junto do seu ventre desmaiam bofes de vísceras, mais do que os da respiração ou do cansaço. Abre-se por dentro dos gritos num movimento que só cessa quando o batimento acelerado de um coração ansioso dá lugar ao silêncio que se quis impor na escuridão do dia.
Creuse dá uma significância aos sons ensurdecidos pelo invólucro que é o corpo, sendo um filme que dá a ouvir o que não é ouvido. Estar dentro do próprio ser na eternidade da escravatura da rotina pode ser um fardo exaustivo. Conseguir ouvir um tendão a distender ou o pulsar de uma veia pode ser intolerável ao ponto de ser necessário ser exterior ao seu corpo, independentemente de todo o cuidado e atenção prestados a si mesmo.
Numa dialética contraditória que se vai estabelecendo ao longo do filme tem-se a passagem de um silêncio ao barulho, de uma presença a uma ausência, de planos calmos a esdrúxulos. A respiração funda e final fazem sentir que o dia findava e teria de findar naquele momento. O esboçar de um sorriso indecidido como o de uma criança só poderiam existir se houvesse uma entrega do corpo delirante à própria dor sôfrega. A audição que se intensificava teria inevitavelmente de dar lugar a pingos azulados de sangue vermelho. A vida teria inexoravelmente de esvair-se para dar lugar ao chilrear dos pássaros.
Catarina Gerardo